terça-feira, 1 de agosto de 2017

A FILOSOFIA ESTÁ NA MODA?


Ciclicamente, a Filosofia parece estar na moda.
Por mim, nunca sei se me hei-de congratular ou se devo desprezar esses subitâneos rompantes de fascínio, do senso-comum, pelo domínio que sempre teve, no senso-comum, o seu inimigo principal.

A Filosofia entranhou-se em mim pelos 13 anos. Ai, nunca vos contei essa descoberta que foi, simultaneamente, a descoberta de um imortal amor? Gosto muito da história em causa. É breve. Querem ouvi-la? Não? Mas posso contá-la na mesma. O ponto é que, na minha família, nunca existiram antecedentes filosóficos. Talvez meu avô, mas meu avô viajava pelo mundo e eu, enraizado em Moçambique, mal o conhecia. Através dos pais, nem pensar. Um irmão, 11 anos mais velho, era um jovem pouco interessante, como o são todos os jovens aos olhos de seus irmãos mais novos. (Embora, pensando melhor, ele fosse, frequentemente, o meu ídolo - como, afinal, todos os irmãos mais velhos). Nada no meu mundo, entre o Tintim, os circos, a praia, a bicicleta e uma escola preguiçosa, me acenava filosoficamente.

A «descoberta» deu-se quando tropecei num manual de Filosofia, pertencente, quase de certeza, ao idolatrado chato que era o meu irmão. Devo tê-lo furtado. Revejo-o na minha memória: capa dura, roxa ou violeta, com uma reprodução de O Pensador, de Rodin, e, lá dentro, capítulos de texto, texto, texto: nada de organogramas ou ilustrações. Mas os textos eram chamas. A sucinta apresentação da filosofia de cada um dos autores programados, talvez com excertos da sua obra, e uma crítica sistemática. Fixei-me em algumas citações, dessas que ecoam e reverberam: Descartes e o Penso, logo, existo, Sartre e o A existência precede a essência. Se percebia? Com certeza que não. Mas adivinhava o poder de concentrar uma visão numa fórmula, uma tese quase num paradoxal epigrama. Estava fisgado.

Tão fisgado, que principiei imediatamente a redigir a minha obra de Filosofia, incipiente mas esforçada. Intitulei-a As Tentativas. Dactilografava-a na Olivetti de minha mãe. Decidi que eu seria existencialista, porque a etiqueta continha uma sofisticação decisiva. E ainda me recordo de discussões vulgaríssimas, sem sumo algum, entre amigos, sobre raparigas, ou motos, ou professores,  em que não perdia a oportunidade de encaixar um poderoso «Não concordo, pá, é que, sabes, eu sou existencialista...»  

Está narrado este mito pessoal sobre a Filosofia como meu destino, que o mundo dos genes ou o da cultura não auguravam. Claro que, portanto, uma certa arrogância aristocrática, de que, em matéria de Filosofia, não consigo purificar-me por completo, me faz olhar para as modas filosóficas com algum desdém. Observo que é sempre a propósito de doenças psíquicas (a Filosofia como um novo método de cura), ou de males do planeta (a Filosofia como uma reconversão ecológica), ou de maus-tratos a animais (a Filosofia como uma reflexão sobre os Direitos de todas as espécies), ou da crise de espiritualidade (a Filosofia como uma proposta de meditação ou de religação à energia do cosmos), que estas modas proliferam. Ora, se tais correntes me parecem, em geral, bem intencionadas e promissoras, temo que subsista sempre um equívoco na forma como procuram apropriar-se da Filosofia. Não que daí venha mal ao mundo. A questão nem é que os múltiplos movimentos não se possam aproveitar dessa colagem. Insisto apenas na demarcação: dessa colagem não resulta qualquer específico benefício ou malefício para a Filosofia, ou para o autêntico conhecimento desta.

Apenas porque a Filosofia não é isso. Não, obviamente, porque me apeteça ditar o que ela deve ser; não, obviamente, porque se não possa transformar ao longo da história, abrindo portas a novas questões; mas porque faz parte do seu conceito a distância em relação ao efémero: ela é o pensar que se regula pela ideia do universal, e se recusa a tornar-se refém ou a esgotar-se no exclusivo recorte dos assuntos e dos interesses do nosso tempo. Não a reconhecemos (nem a conheceremos) na sua essência, pois, em nenhum dos meritórios avatares que tentam multiplicá-la.    

3 comentários:

  1. Creio que a Oliva da tua mãe serviria mais para costurar... Não quererias dizer Olivetti ? :-)

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  2. Acho que era Oliva. Tens a certeza? Há que investigar.

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  3. Tinhas razão, é claro. Curioso, a memória prega destas partidas. Já corrigi.

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