sábado, 30 de setembro de 2017

VOCÊ


O escritor Mário de Carvalho, talentoso, inteligente e cordato, tem, porém, autênticas fúrias asassinas quando o tratam por você.

Você é, realmente, uma expressão desrespeitosa e descortês. Usá-la, em vez de "o senhor" (não precisa de ser "o sr. doutor", mas apenas "o senhor", ou "o Mário de Carvalho", como em: «Mas diga-me, Mário de Carvalho, o que pensa o Mário de Carvalho sobre o assunto?»), implica sempre uma desconsideração que, também a mim, consegue arrepiar bastante. Não é pior nem melhor do que tratarem-me por "ó chefe", com a ironia subentendida. É igual.

Ora Mário de Carvalho, que teve de passar, num destes dias, por um hospital (ou um centro específico de tratamento, confesso que não sou capaz de precisar), elogiava a competência, mesmo comparando internacionalmente, do modo como foi atendido, mas acrescentava, com alguma tristeza, que, muitos desses profissionais, simpáticos e eficientes, eram, todavia, da escola do você. Você para aqui, você para acolá.

Eis onde reside o ponto.

Profissionais simpáticos e competentes, dando o seu melhor por um doente que os procurou numa aflição, não estariam com certeza, intencionalmente, a desrespeitá-lo. Na mente daqueles, você não significaria um tratamento que menoriza. É natural. Ainda me lembro da estupefacção de um aluno por, uma vez, lhe ter chamado a atenção para a forma como se me dirigia. "Mas", retorquiu, não alcançando o que me incomodara, "eu disse você. Não disse tu."

Estamos perante uma questão geracional da língua portuguesa. É uma análise que respeita à pragmática. Não existe, no uso que os jovens fazem do termo, a intenção que os mais velhos acreditam identificar.
Merece a pena a luta, se o uso de uma língua inevitavelmente se metamorfoseará?

 Merece, sim. Creio que Mário de Carvalho tem razão, como argumentarei em duas linhas. E que dependerá, em última instância, unicamente dos educadores, que as gerações desconhecedoras aprendam a subtileza na diferenciação. Não por snobismo. Não pela preocupação classista com a hierarquização reflectida no tratamento.  (Só por ignorância se poderia acusar, disso, Mário de Carvalho). Mas pelo valor da cortesia; e, quanto mais não seja, porque a subtileza no emprego dos termos é sempre sinal de uma língua mais rica e complexa, capaz de carregar de cambiantes a comunicação. Enquanto a indiferenciação das palavras representa, necessariamente, um empobrecimento. Da língua. Da comunicação. Das relações.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O INTELECTUAL DE ESQUERDA


              
Um intelectual de esquerda é  um tipo em quem a ética e a cultura estão divorciadas.

     Em O Caminho para Wigan Pier, George Orwell tem um capítulo inesquecível, impiedoso na sua mordacidade, acerca do intelectual de esquerda, que no-lo apresenta segundo um padrão de que fariam parte, desde certas neuroses ideológicas, até à higiene (ou falta dela).
     O livro merece ser lido por muitas razões. Maria Filomena Mónica recomendava-o, inclusivamente, como imprescindível numa bibliografia séria da literatura para o estudante de sociologia. O capítulo sobre a Esquerda Caviar, como se lhe chama hoje, é apenas uma parte menor. Mas foi a que verdadeiramente causou dissabores ao Autor.

     A figura do intelectual de esquerda é a de alguém que não está em paz com nada. Nem com as suas origens, que abomina e mascara, nem com as classes a que se devota, porque a sua relação com os "trabalhadores" contém necessariamente tensões e equívocos, fascínios e desprezos (mútuos) que não facilitam a comunicação.

     O intelectual de esquerda é sempre mais radical do que o operário vulgar. Deseja a mudança profunda e súbita. O proletariado ambiciona poder de compra, enquanto o intelectual é um crítico feroz da sociedade de consumo. Sabe perfeitamente que esta seria o equivalente contemporâneo à caverna, sobre que escrevia Platão, na sua famosa alegoria. Apenas sombras. Apenas ilusões. Ora os "trabalhadores" não pretendem senão poder entrar nessa caverna, como se fosse um clube. É sempre numa vida melhor que pensam. Não porque não aspirem à dignidade. Mas porque, para eles, a dignidade se mede sempre em bens possuídos e ostentáveis.

     Um operário ou um camponês odeiam os livros ou os filmes que os intelectuais de esquerda veneram. O "povo trabalhador" não frui Godard nem ri com o humor neurótico de Woody Allen. Nunca pagaria para ver Bergman ou para ler os neo-realistas. Muito menos Brecht, de quem também não sou o adepto-mor. Os "trabalhadores" prefeririam MPB (não, não Música Popular Brasileira, mas música popular brejeira) a fosse que música erudita, revolucionária, avant-garde.

     A tal ponto Lenine o sabia, que, para ele, fluente em alemão, francês, inglês, leitor de Hegel ou de Marx e Engels na língua original, ou seja, um autêntico intelectual, nunca houve dúvidas sobre que tinham de ser estes a decidir o que era melhor para o povo. Muito antes dele, Platão já tivera a mesma convicção. Os pobres não são os melhores juízes dos seus próprios interesses. Como as crianças, precisam de um pai que pense por eles.

     A esquerda aprendeu à sua custa. A democracia impôs-se. Para o bem e para o mal, aliás. (Deu-nos Trump; deu-nos o Brexit; deu-nos Isaltino). E os intelectuais democratizaram-se. Talvez não tenham tido outro remédio. Já sabem escutar. Ou fingem melhor. Ainda "explicam" os resultados segundo os seus modelos teóricos. Mas não insistem em que todos devem ler livros de filosofia ou apreciar teatro. Não é que os "trabalhadores" não conseguissem por causa de qualquer inferioridade intrínseca. É que os intelectuais perceberam, por fim, que não lhes cabe ditar do que devem as pessoas gostar. E que não se educa ninguém à força.




quinta-feira, 28 de setembro de 2017

AUMENTOS QUE SUBTRAEM


Sou, desde o instante da sua criação, um entusiasta da Geringonça. Numa união das esquerdas, vejo uma bússola que aponta o que não pode senão ser a possibilidade que ética e politicamente mais me toca, que é a de proteger os mais vulneráveis numa sociedade injusta, desigual, em permanente guerra civil.

Mas o PS, há que confessá-lo, é um partido ambíguo. Tem um problema, e sente-se pressionado de todos os lados. Internamente, existem facções que nunca digeriram a aliança e que  - apesar de momentaneamente tranquilas, porque as coisas têm corrido bem ao Costa - estão à escuta, silenciosa e tensamente, aguardando, prontas para a hora da punhalada.
A coligação é dura de gerir. Não duvido. BE e PC, que, para mais, não conversam entre si, são pressões atentas, exigentes e com pouca paciência.
Por fim, mais do que a oposição - a oposição está morta - temos Bruxelas e as empresas de rating.

É um equilíbrio impossível. Se não se atende aos partidos-companheiros, não se avança, pensa o Primeiro-ministro. Mas se ignorarmos Bruxelas e as as suas metas ou as companhias que nos atiram ao lixo, reflecte ele, não há confiança dos mercados, nem, portanto, investimento.

De forma que percebemos que manter os pratos todos  a girar, ao mesmo tempo, sobre as varas (corre, Centeno, que aquele está quase a cair; olha o outro, ali, a descair...) exige alguns truques, algumas distorções, algumas manigâncias. Mesmo na companhia de um Presidente que não põe obstáculos, e é um apoio extraordinário, desdramatizando, reconciliando e ajudando a compreender razões, não poderia não se recorrer a alguma engenharia financeira que ultrapassa tudo o que é compreensível.

Quando é que essa engenharia começa a cheirar mal? Eu vos digo. No ponto em que se introduz um elemento de má-fé. No ponto em que se falseia o contrato social. Quando descobrimos que nos estão a comer.

Dirão: Já viram? Estava do lado da Geringonça até começarem a tocar no seu dinheirinho. Mas não. Repito. Venham buscar o meu dinheiro, que eu sou generoso. Peçam-mo. O mal está em enganarem-me. Falarem por exemplo de reposição, quando, o que repuseram, automaticamente me fez mudar de escalão, no IRS e, ergo, receber menos do que recebia sem a dita. Não é um engano. Nem é não terem medido as consequências. É desonesto. Ponto. Eu não gosto. Ponto. Dispenso a reposição, obviamente.

Repete-se agora a esperteza. Aumentaram-me uns cêntimos no subsídio de refeição - uns cêntimos, literalmente - para, uma vez mais, me mudarem de escalão e me virem buscar mais uma maquia. Ou seja: aumentarem-me para, sob esse nome, sob essa máscara, diminuirem de facto o meu ordenado.

É este lado do PS que me irrita. Esta desonestidade nos nomes, para aproveitar de uns (a classe média, especificamente), continuando a sorrir para os parceiros.

Como os miúdos que, na hora da foto, mantêm a postura digna e inocente, enquanto, secretamente, erguem, com dois dedos sobre a cabeça do vizinho do lado, o símbolo de um par de chifres.
Mas o PS não tem a mesma graça. Neste caso, não é bem uma garotice. É uma vigarice.

domingo, 17 de setembro de 2017

TAUROMAQUIA


Desculpem autocitar-me, mas vem a propósito.
Numa página de veganos e vegetarianos, alguém reproduziu um artigo em que um idiota, não há tolerância que me faça atenuar o adjectivo, visava provar cientificamente que os touros não sentem dor, porque segregam uma hormona que, e blá-blá-blá. Os frequentadores da página reagiram com indignação. Num dos vários comentários, uma senhora escreveu: "Qualquer dia a ciência consegue provar que esta besta não tem cérebro." Alguma coisa no género. E eu então, inspiradíssimo: "Mas pelo menos, nesse caso, seria verdade. Eu não gosto de insultar, porém está cientificamente provado que os broncos não sentem os insultos, porque segregam uma hormona que os auto-anestesia e faz que nem compreendam de que se trata."

Este uso da linguagem científica em nome dos interesses egoístas tem qualquer coisa de aterrador. Seria muito fácil "provar" cientificamente que as raposas têm uma hormona desportiva que as faz apreciar vivamente serem perseguidas por matilhas de cães e homens de cartola ou bonezinho e jaqueta vermelha, a cavalo, ao som de uma trompa, ou que diabo é aquilo. Ou que, na gazela que recebe um tiro, dispara a adrenalina que a leva a sentir a morte como um orgasmo. Tanto faz!

Ainda que fosse verdade, e não é, valeria tanto como defender-se que certos seres humanos (por exemplo os halterofilistas) são imunes à dor, pelo que seria aceitável um espectáculo em que lhes espetassem bandarilhas. O que está em causa é a barbaridade de se atirar com um animal para uma arena onde, entre bravos e olés de bandos de sádicos, o vão acossar, provocar, assustar, espetar.

No momento em que o projecto de elevar a cultura tauromáquica a património imaterial da humanidade ganhou uma primeira vitória, torna-se fundamental recordar que, neste ponto, todo o relativismo soçobra. Não há ciência nem ética alternativa que tenham legitimidade para sustentar uma cultura do sofrimento de um ser vivo. Em nome de nada. Nem da tradição, nem da beleza de um homem em calça justa, ou da coragem de um grupo de saloios prontos a agarrar o touro. Ou da nobreza de cavaleiros, vestidos como o Marquês do Pombal, a investir e a espetar. Ou de empregos, ou do que vos ocorra. Nada justifica a barbaridade, o terror, a falta de empatia, a degradação.

E não me falem de Hemingway. Isto porque, entre os aficcionadoas com algumas letras, há sempre alguém que nos apedreja com o exemplo de Hemingway. Mas um grande escritor não é um homem infalível nem um modelo ético. É apenas um grande escritor, que continuarei a ler. Posso espantar-me dessa horrenda falha na personalidade de um homem culto, sensível, amante de gatos. Mas não me falem dele, nem me digam que há, na tauromaquia, um espírito em que nunca entrei e não consigo compreender. É mais simples do que isso. Não existe, no bullying, nada a compreender. No bullying, por ironiade um touro, mais assustado do que bravo, mais desnorteado do que enraivecido, tudo o que vejo é uma terrível besta selvagem: o homem.


sábado, 16 de setembro de 2017

UMA IDEOLOGIA DA RABUGICE


O PCP já existia quando os outros partidos portugueses nem em pensamento eram sequer embriões. A história do Partido Comunista é, naturalmente, a de coragens e cobardias, esperanças e traições, sobre o vector de uma absoluta coerência ideológica.

Sabíamos sempre as razões do PC: podíamos discordar, mas elas eram racionalmente reconstituíveis a partir de algumas bíblias, Marx, Lenine, Staline e, ao longo do tempo, a intransigente interpretação dos factos segundo a estratégia e as tácticas do PCUS.

Como a União Soviética já não existe e cada partido comunista, em cada país, sofreu as suas próprias mutações internas, assistimos a imprevisíveis refazer de alianças, escolhas, proscrições. Partidos que ensaiavam terceiras vias, cuidavam do seu "aggiornamento", se modernizavam, abandonando Lenine, reformulando Marx. Em todo o lado houve maquilhagens, discussões e bater de porta. Todos tiveram as suas Zita Seabra.

Deve ser difícil. A perda de um pai. E os primeiros passos da autonomia que a orfandade requer, mesmo quando já temos 30, 40, 50 anos. A quem peço agora boleia, mesada, conselho? Quem me ralha? Quem me assegura que conseguirei?

No PCP, as sucessivas reformulações tornaram-no, curiosamente, num partido mais dependente de ciúmes, invejas, ressentimentos, hábitos e manias, do que de qualquer coerência ideológica. Dois exemplos muito simples: tendo a visão de integrar a benfazeja Geringonça, não é verdade que o seu comportamento relativamente ao BE soa, muitas vezes, ao de Caim - o irmão invejoso e ciumento, capaz de um irreparável crime num instante de irreflexão e raiva, para que o "puto" não lhe passe à frente ou porque se sentiu preterido e desrespeitado?

Ou a sua posição a propósito da Coreia de Kim. Que há nesta dificuldade em reconhecer que se trata de tudo menos de uma democracia, senão uma espécie de caturrice de velho incapaz de mudar e perceber?

Em pequenos tiques e grandes tiques o PCP revela-se um partido fechado e idoso.
Na Geringonça, teria uma oportunidade única para reaprender a importância e o preço da unidade.
E do que verdadeiramente se mantém essencial para qualquer partido de esquerda, em qualquer parte do mundo e do tempo.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

PLÁGIOS


Num programa radiofónico, Nilton ofereceu-nos a sua única piada de jeito em muitos anos, talvez até de toda a sua vida como comediante. A propósito de Tony Carreira e do alegado plágio de 11 canções, comentava Nilton (cito de memória): "pior do que o plágio, o que me preocupa é que haja no mundo mais onze tipos a fazer música desta!"

Em música, a identificação de um plágio obedece a critérios rigorosíssimos. Não sei quantos segundos de uma melodia similar dificilmente seriam considerados coincidência. Embora possamos dizer das coincidências: pero que las hay, las hay. Ou outra coisa ainda, para além da coincidência, que é o compositor não estar nunca inteiramente consciente de como certas influências o estimularam ou marcaram em segredo.
Seja como for, se me pusesse a falar disso (a partir de fontes fidedignas) explicaria como algumas das mais belas canções portuguesas plagiam - ou coincidem com - antigas e perfeitas melodias, sem que se dê por isso, até porque, para tanto, seria preciso conhecer os originais, os quais têm já alguns anos: os Aznavour, por exemplo. E por esta soez insinuação me fico. Cala-te boca.

A minha primeira reacção é pensar que, a um certo nível de ausência de qualidade, o plágio não devia incomodar-nos. É realmente importante que ao obrar, na sanita, esteja a copiar obra alheia? Ui. Apercebo-me rapidamente da ofensa contida na minha analogia. Hoje não estou bem. Apresso-me, pois, a pedir perdão ao cocó por estar a compará-lo com a música de Tony Carreira.

Entretanto, lembro-me de que nem é a qualidade que está em causa. As canções de Carreira & Landum podem não ser Lennon & McCartney (a menos, obviamente, que os copiassem, mas para isso careceriam de algum gosto musical), no entanto também movem multidões, gritos, beijos, perseguições, sutiãs atirados para o palco quando cantadas ao vivo. E, mais que tudo: dinheiro. É natural que as companhias discográficas se insurjam por descobrir que esse dinheiro não é para elas. Nem para os seus músicos, que originalmente as haviam composto. E composto com tanto esforço - que diabo! é preciso o dobro do esforço quando se tem poucochinho talento. Hão-de querer ganhar agora qualquer coisa. É natural.

É um número digno de se ver. Não perderei os desenvolvimentos. Ainda melhor do que estar nos melhores lugares para um espectáculo com Tony Carreira no Olympia.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

SALVADOR


Quando ouvi pela primeira vez a canção do Salvador, muito antes da sua feliz vitória no Eurofestival, desagradou-me de imediato. Ao contrário de tantas pessoas, que se renderam sem luta, eu combati intensamente. Aquilo tinha ar de se arrastar como uma jibóia digerindo um boi. Era demasiado Maria Guinot para meu gosto. Nem a voz do Salvador me parecia ter salvação.

À força de a escutar, porém, comecei a intuir com algum prazer a melodia sob as camisolas que a sufocavam nas lentidões de orquestra sinfónica da Emissora Nacional. Não o confessei logo. Sentia-me bem no lugar de um tipo que, contra a generalização do apoio, continuava a dizer mal. Amigas minhas, que a ouviam quase em êxtase, eram, a seguir, varadas pelo fio do meu sarcasmo.

E apesar de tudo, na noite do Eurofestival, sofri todos os minutos numa esperança que, incrédula, ia ganhando força. O Salvador soou-me, e isto é absolutamente verídico e não um mito tardio, em contraste com as canções concorrentes, de uma beleza e de uma qualidade inigualáveis. Como mais um desses portugueses de gerações que se habituaram a ser torturadas pela eurovisão como sinónimo de uma humilhante derrota, dei conta dos resultados de lágrimas nos olhos.

Fui honesto. No que escrevi de seguida, dava os parabéns ao Salvador, sublinhando sempre que vencia com uma canção de que eu nunca fora fã.

 Com o tempo, aprendi a apreciá-lo na sua qualidade de ser humano interessante e completo, culto, sensível e generoso, com uma voz capaz de voos maravilhosos e uma coragem que vai sendo rara. Vi isso, como vi a ponta de arrogância que estava a mais, ou os actos intempestivos de um humor que às vezes é mais rápido do que a própria sombra e, certamente, mais rápido do que a inteligência ou um certo sentido das conveniências. São defeitos menores. Somos todos como ele. Ou tomáramos nós.

Neste momento complicado da sua vida, em que a imprensa, como escrevia uma amiga sua, rompe, com títulos infames, o seu direito à privacidade e ao sossego, quero desejar-lhe (salvo que ele não lerá uma crónica discreta e perdida como esta) que encontre um coração à altura do seu coração. E que o já do seu até ao público seja um já muito breve.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O ÚNICO VERDADEIRO PROGRESSO



Há duas coisas em que a idade realmente não perdoa. Uma é, nos homens, a dramática escassez de cabelo no cucuruto. Outra é a radical transformação da potência da vista. Se em jovens tendíamos a ser verdadeiros super-heróis, dotados quase de visão de raio-x, a partir de um certo número de anos os olhos, de diversas maneiras, começam a ganhar preguiças que não dão jeito.

Parece, aliás, que, mercê do abuso de aplicação da vista nos écrãs dos pc e dos telemóveis, a idade em que os olhos desatam a pregar partidas de mau-gosto é cada vez menor. Meu filho descobre, aos vinte e pico, que a sua visão «já não é o que era», embora parte do problema dele seja certamente ter herdado alguns dos meus genes-toupeira. No seu caso, terá sido a dificuldade desses genes em ver o caminho, que fez, até, que chegassem tão tarde. Mas esqueçamos, então, o rapaz: tenho tantas amigas que confiavam plenamente na sua acuidade visual e, cada vez mais, dependem de uns óculos que lhes desfiguram o rosto. Já não são quem eram. E não.

Em mim, o que mudou foi que, quando usava óculos, via bem. Ao menos isso. A minha miopia assentara, mal lhe prestava atenção. Era um caixa-de-óculos tranquilo.
Porém, com estes «auxiliares visuais», como me dizia um barbeiro, os quais, sendo para ver ao longe, não interferiam no entanto na visão de proximidade, vem acontecendo há algum tempo que já não consigo ver correctamente ao pé. Ponho-os para perceber quem me chama, ao fundo de uma sala. Mas tenho de os tirar para ler um sms no telemóvel. É desconcertante. E pouco prático.

Sempre que tenho de dar aulas com óculos, recordo-me de uma imitação hilariante que, há muitos & muitos anos, um jovem professor meu, de Física, fazia de um seu colega que conhecíamos todos demasiado bem. Esse infeliz homem precisava de dois pares de óculos. Um para perto, outro para o longe. Punha o primeiro para ler o nome do aluno, ao fazer a chamada. O aluno respondia, de um vago ponto na sala, «presente». O homem olhava-o ainda com os óculos de ler. Tinha um estremecimento de surpresa. Trocava-os. Vislumbrava o aluno. Voltava para o nome seguinte, sem se lembrar de mudar de óculos. Novo arrepio de estupefacção. Trocava-os. Fulano de tal. «Presente». Estremecimento. E assim sucessivamente, ao longo da chamada dos trinta alunos da turma.

A razão por que não opto de imediato por umas lentes progressivas é simples; e estúpida: tiveram sempre má fama. Ainda ecoam histórias aberrantes no meu subconsciente, seja isso o que for. Pessoas que padeciam para se lhes adaptar. Sofriam tonturas. Caíam ridícula e estrepitosamente na escada rolante. Alucinavam, quase. Mas como, por outro lado, já não suporto o gesto de tirar e pôr consecutivamente as cangalhas, consoante mire a linha do horizonte, ou me aproxime da página de um livro, começam a faltar-me alternativas. No fundo, sim - para não falar de operações redentoras, que me devolveriam, em certa medida, os olhos da juventude, mas a que não me atrevo ainda - resta-me ganhar coragem para me adaptar a umas lentes progressivas. Bem vista a coisa, e fazendo fé no nome, deve ser o único verdadeiro progresso na vida de um tipo.  

terça-feira, 12 de setembro de 2017

SHRINKS

 

   "Metade é ciência e a outra metade é fé."
                                       Novalis


Não poderia negar que uma grande parte, mais de 50%, do que se pesquisa e afirma no campo da psicologia, seja, para resumir numa palavra, científico. Conheço várias pessoas que, acompanhadas por psicólogos especializados em diversas variantes e tipos de abordagem, foram efectivamente tranquilizadas; sustidas nas suas crises; nos seus medos; transformadas no que respeita a comportamentos desequilibrados; reintegradas na família; na comunidade; na existência. Testemunhei razoáveis índices de casos de eficácia, mais demorados uns, mais discutíveis outros, para que, apesar de tudo, não reconheça alguma credibilidade à psicologia. Embora, claro, me aflijam os psicólogos que sobremedicam. Os que encharcam em medicação. Os que mantêm pela trela. Os que alienam. Os que zombificam.

O senso-comum norte-americano, como é sabido, trata os psiquiatras, num misto de desprezo e receio, por «shrinks», ou seja,  «redutores» - ligando caricaturalmente a sua função à dos redutores de cabeça. Compreendo esse sentimento de suspeição. Nos EUA, precisamente, a psicologia apresenta-se como um assustador teatro de lutas internas, chocantes assassinatos do pai, ruidosas excomunhões e denúncias mútuas de fraude. Revela-me e narra-me um livro (por acaso muito interessante, mas extremamente parcial, e cujo título original é nada menos do que Shrinks - The Untold Story of Psychiatry), a história recalcada da omnipresença dos psicanalistas na América e do papel, segundo o autor, muito pernicioso que a sua influência teve na marcha da psiquiatria.

Mas essa história é também a história das sucessivas versões da Bíblia da psiquiatria, Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders, o «fidedigno compêndio», define-o Jeffrey Lieberman, «de todas as doenças mentais conhecidas». Ora, percebermos até que ponto o registo e a caracterização de muitas doenças mentais nesse compêndio, mais do que o resultado de pesquisa e experimentação científicas, foi o consenso de exaustivas negociações e jogos de poder entre correntes em choque, sob o escrutínio atento das esferas do politicamente correcto, abala certamente a confiança de qualquer potencial paciente.  

Houve sempre nessa luta para que se aceitassem ou recusassem determinadas descrições como evidências de "desordem mental", qualquer coisa de pouco sério e de pouco científico, associada a interpretações e dependente da conveniência em manter certas categorias de "doentes". O que é exactamente uma "neurose", por exemplo? Uma desordem ambígua, vagamente diagnosticável? Uma ficção? O certo é que os psicanalistas perceberam que seria mau para o seu negócio excluir essa identificação. Sem neuróticos, quem teriam para tratar? E a homossexualidade, deveria ser registada como uma perturbação? Quantos argumentos, e preconceitos, em torno dessa pergunta.

Depois, temos, por exemplo os psicopatas. O que é um psicopata para além do que vemos nos blockbusters? Como o reconhecemos? E, se o identificamos, podemos curá-lo? Ou estamos a falar de alguém com um cérebro de tipo diferente e, portanto, liminarmente incurável? Seja como for, pesquisem por uma lista designada por "teste Hare" para reconhecer um psicopata. Que vago. Que ambíguo. Como nos poderíamos todos, de um modo ou de outro, reconhecer aí.

Como se todas estas dúvidas não bastassem, tropeçamos quotidianamente numa sub-categoria da fauna, que é o "psicólogo português". Ouvimos os disparates do Dr. Quintino, na rádio, na tv e em cassete, ou pelo menos em livro, ou daquele senhor de voz mansa, com truques para tudo, o Dr. Sá, ou as certezas do Dr. Strecht, e mesmo as do Dr. Daniel Sampaio, esse guru, esse Mestre Yoda da Arte, e metemos a marcha-atrás.

Entre nós, cada vez mais, parece que todos poderíamos ser políticos, treinadores e psicólogos. Não sei. Mas olhando em volta, desconfio que sim.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

LA RENTRÉE


Aprendíamos, naquele manual de francês que falava da família Dupont e de seu cão Patapouf, que o dia de regresso às aulas era apenas "La rentrée".

Seria com certeza um livro muito bem concebido se, decorridos estes séculos e estas vidas, ainda me lembro tão bem de tudo isto. A menina não se chamava Nicole? Julgo que sim. Comparem-no (ou ao de filosofia, de que já falei em outra crónica, e marcou decisivamente a escolha do meu percurso académico) com os manuais que, tanto tempo de revoluções pedagógicas e didácticas volvido, são, hoje, os dos nossos filhos, fugazes, esquecíveis, impotentes para orientar vidas, iguais uns aos outros (com belas excepções, na verdade) e percebemos que se tendeu a perder uma sabedoria essencial.

Os jovens, porém, não mudaram em um aspecto. Pelo menos, à superfície: continuam a encarar o regresso como nós o fazíamos. Um idêntico misto de temor pelas novidades, novas matérias, outros professores, e o desejo de reencontrar os amigos que as férias haviam levado para longe. Uma agitação interior, uma febre de primeiros beijos e abraços, de conversas e risos de intervalo. Mudaram em outro, porém. A ansiedade por exibir: o telemóvel, que não existia para nós, os ténis, que no nosso tempo eram simples Sanjo e não os obrigatórios Nike ou Adidas, a mochila, que não ostentava marca alguma; e, claro, não mudaram na ânsia de estrear cadernos e lápis.

Antes, o "material para a rentrée" não tinha sido, ainda, elevado a objecto de um negócio maior na sociedade de consumo. A partir de certo momento, os pais, coitados, começaram a ver-se arrastados nessa tempestade consumista que também parece dever-se às alterações climáticas. A ideia de que os filhos não se preparem para o recomeço com roupa nova e novos apetrechos tecnológicos que, aliás, serão abusivamente usados durante as aulas, tornou-se um sinal dos tempos. Uma fúria gastadora. E um pesadelo.

sábado, 2 de setembro de 2017

YOUTUBERS


A reboque de pioneiros na discussão deste tema, como Nuno Markl, que lhe dedica uma crónica muito bem esgalhada, sob a forma da carta de um pai preocupado com o que o filho segue na net, deixem-me pegar hoje, também eu, na questão dos YouTubers.

Os adolescentes e os pré-adolescentes estão completamente vidrados nestes jovens trintões que fizeram do uso do YouTube a sua profissão. Em primeiro lugar, o conceito nada tem, em si mesmo, de arrepiante ou maligno. Pessoas que vêem nos YouTubers um bando de tipos frívolos e sem um autêntico trabalho são pessoas com um preconceito similar aos dos nossos avós, quando diziam que ser-se actor ou pintor era preferir, a um emprego sério e estável, o mundo da decadência moral e social. Markl lembra-nos isso nesmo, aliás. O irresistível fascínio que mostra, sob a crítica construtiva e ingénua que lhes dirige, é o de alguém que gostaria de haver tido, no seu tempo, a possibilidade de recorrer a esse poderoso instrumento. Os YouTubers não são tipos frívolos sem um trabalho sério, são tipos frívolos com uma cena que devemos levar a sério.

O problema é, pois, o da linguagem. Eventualmente, o da visão do mundo subjacente ao tipo de humor praticado, sobretudo porque quem os segue são os miúdos mais novos, logo desde os 8 ou 9 anos.

A questão é que nem a banalização desta linguagem nem a deste humor são uma invenção dos YouTubers. Para sermos rigorosos, tais formas já nos tinham entrado na própria televisão, há muitos anos, pela mão de Teresa Guilherme. Os Big Brothers, as Casas dos Segredos ou esta outra casa que agora aí está, com os seus energúmenos despidos de igual, os seus cortes de cabelo iguais, as suas tatuagens e piercings, os seus amores e desamores, os seus palavrões 24 horas por dia, constituem o verdadeiro modelo de todos estes avatares.

O óbvio relaxamento dos costumes, que sempre fez parte de uma certa esfera e de uma certa fase da vida dos jovens (na universidade, entre bebedeiras e cenas tristes, ou na tropa) tornou-se "normal" a partir do momento em que a televisão lhe abriu as portas. Tornou-se aceitável, na mente dos jovens, desde que a tv mostrou o primeiro grunho a dizer "f...-se!" ou "vai pó c...!", em horário nobre.

O Facebook, o YouTube, o Tweeter, ou quaisquer que sejam os instrumentos das redes sociais, amplificam esta legitimação que fora feita pela tv. E como estes meios representam, hoje, o habitat natural de todos os jovens, expandiram-se uma linguagem, um humor, uma visão, uma subcultura (de que faz parte uma submoral), que não só lhes devieram familiares, como, insisto, normais: formam verdadeiramente o seu modo de estar, com uma força e uma abrangência que dificilmente poderemos deter ou inverter.

Curtir Quim Barreiros, cultivar o bullying como uma forma de humor ou de expressão da raiva, arrasar um hotel numa divertida viagem de finalistas a Espanha, não ver nada de profundamente errado numa cena de violação de uma caloira, num autocarro, fazem parte da mesma subcultura. Os jovens sempre passaram por experiências análogas. Eram ilhas no tempo e no espaço. A rede, hoje, tornou-os na totalidade da sua experiência. Modelo de relação e comunicação. A rede fez do seu mundo um campus. A rede fez do seu mundo uma caserna.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A CRÓNICA



Nunca tinha escrito crónicas, embora sempre as lesse com gosto. Trata-se de, no fluxo do tempo, cristalizar um instante. Não para a posteridade (embora algumas crónicas a merecessem). Pelo contrário: elabora-se tão-só um registo que possamos ler, gozar e esquecer, porque a sua substância deve ser a do próprio tempo, na sua volatilidade, na sua leveza, no seu desenraizamento.

O parágrafo anterior não diminui a crónica. Nada do que escrevi pode ser lido como um atestado de menoridade. Ela é uma forma muito específica e complexa, para a qual nem todos terão talento, começando, provavelmente (que é o meu eufemismo preferido para: "de certeza") por mim próprio.

O cronista saltita de uma ideia política, num texto, para uma sobre futebol, em outro. De uma emoção para uma teoria. De uma indignação para um fascínio. Fala de um livro que leu ou de um filme que viu. De filosofia ou de memórias de infância. O que quer que, num momento, possa formar uma certa figura passageira, sob o brilho do sol, constituirá o seu registo do momento. Não é maravilhoso? Como numa mandala,  o empenhamento criativo e estético fará nascer qualquer coisa, que, depois, deliberadamente, será soprada e desaparecerá.

Na língua portuguesa se exprimem alguns dos cronistas que mais admiro, o que é um eufemismo, desta vez para: invejo. Luís Fernando Veríssimo e Ricardo Araújo Pereira fizeram do humor na crónica uma arte suprema. António Manuel Pina era de uma singeleza difícil de atingir. De outros, tendi a afastar-me, por injustas e variadas razões: António Lobo Antunes foi encantador, mas deveio, de semana para semana, monotonamente igual a si próprio.

Lia João Pereira Coutinho, cujos textos me entusiasmavam por serem os de um conservador culto e inteligente, com quem me agradava discutir mentalmente e de quem podia discordar para além do território estrito das ideias pré-fabricadas. Ainda o espreito, apesar de um certo snobismo intelectual acabar por se tornar fatigante.

O meu predilecto há-de ser eternamente, nesta fugaz eternidade que corresponde ao espírito da crónica, Miguel Esteves Cardoso. Uma amiga dizia-me, há tempo, que, em certas crónicas, MEC parece estar unicamente a encher papel, sem ter nada para dizer.
Não é "encher papel". É apenas o segredo da leveza. Até o insignificante pode valer umas linhas: passei por aqui quando pensava ou sentia isto. A brevidade tem a sua própria beleza.