segunda-feira, 22 de outubro de 2018

A BELA GALILEU


As Fnac e as Bertrand têm a sua indiscutível comodidade. São-nos úteis. Passamos por corredores onde achamos os livros que queríamos e, literalmente, os que não queríamos, tropeçamos em novidades, sentamo-nos tranquilamente a folhear, encomendamos o que não exista nas prateleiras.

Tendemos a esquecer-nos de que as livrarias não eram isto, e pior, de que isto tem levado ao silencioso encerramento das de antigamente (veja-se, um pouco por todo o lado, o caso das Bulhosa ou a Trama), e a um contínuo combate, das mais resilientes (e eu que havia jurado nunca na vida usar esta palavra), pela sua sobrevivência.

A Galileu, de Cascais, é um ícone. Era eu um adolescente, recém-chegado de Moçambique, quando aí fui desaguar. A abençoada Galileu preechia as minhas tardes de jovem muito tímido, estrangeiro para todos os efeitos, sem amigos, a aprender Portugal e os portugueses. Conheci e fui muitíssimo bem tratado pela Manuela, que lá trabalhava, e pela Paulina, de quem mais tarde me tornei colega, companheiro de luta política e amigo.

Os proprietários eram ousados e expeditos guardiões de livros de muitos lugares e de muitos tempos. Havia, na Galileu, uma cave de livros antigos, onde a pessoa se embrenhava como quem visita um outro planeta.

À entrada da livraria encontrávamos - e ainda! - banquinhas com livros em saldo, em inglês, em francês, em castelhano ou alemão, e os de colecções portuguesas de boa memória.

A sua montra é um permanente exercício de criatividade e bom-gosto. A Bela Galileu, como lhe chama a resistente Caroline Tyssen, mantém-se bela no seu jogo de claro-escuro, luz e sombra, exterior-interior, recente e antigo, presente e passado, cuidadamente expondo-se na sua história, de que sentimos a respiração em cada polegada, na sua estética, no seu amor. Amor pelos livros e amor pelas pessoas.

Tenho sabido que a livraria se debate, e de há muito, com as dificuldades que só uma pessoa com a fibra de Caroline Tyssen tem conseguido contrariar. E ninguém diria, porque, sobre essa luta, se ergue a imponente e bela Galileu, serena e bonita como sempre, e como se nada a magoasse.

Penso que o fechar de portas não tenha de ser o destino. Se fosse, os portugueses e os cascaenses não imaginam, ou muitos sim, mas a maioria não, aquilo que perderiam. Como a extinção do último, o mais raro e mais nobre de uma espécie maravilhosa.

Merece a pena o passeio a Cascais, sobretudo agora que o outono e o inverno se debruçam, os magotes de turistas desenfreados regressam aos seus países, a luz baixa um ou dois tons, e um certo mistério absorve de novo a realidade. É, certamente, o tempo ideal para uma visita à Bela Galileu.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

ROBLES


A quem interesse esta declaração inicial, sou inocente. Não no sentido em que um juiz me deixaria ir em paz, reconhecendo que o crime não fora cometido por mim, mas na acepção com que uma pessoa muito vivida, bem experiente, lamentaria a minha falta de conhecimento do cinismo ou da hipocrisia. Creio que a expressão deveria ser, pois, sou "um" inocente. Ou seja, um tosco! E, no meu caso particular, nem se trataria tanto de desconhecimento, mas de credulidade. É-me em geral difícil aceitar que os comportamentos A ou B possam ter realmente sido movidos pelas intenções iníquas com que os sábios os explicam.

Não creio que este princípio abone muito a favor da credibilidade da minha análise. Todavia, justifica como, bizarramente, eu creia na boa-fé de Robles. Precisamente porque a minha inocência me colocou, em diversas fases da vida, em trapalhadas que nem bem compreendia, mas a que os outros atribuíam razões maquiavélicas, é que acredito na possibilidade, na mera possibilidade de que, mesmo quando tudo parece apontar para nós irremediavelmente, tenhamos caído naquela situação, suspeita, de boa-fé e sem o menor cálculo.

Sabem por que razão, no entanto, nunca me apanhariam na posição de Robles? Porque não tenho nem terei dinheiro para a aquisição de um prédio. Mas se! Atenção: se dispusesse dessa quantia; se uma irmã minha quisesse vir morar para Portugal e me propusesse a compra, a meias, do imóvel em causa (bem! Porque não de um apartamento ou de uma moradia? Por que razão um prédio inteiro...? Enfim!). Se, depois de realizado o negócio, a minha irmã desistisse, entretanto, de regressar. Se aceitasse então revender o prédio, e o meu advogado de confiança me dissesse: Ó Pacheco, pá, olha que esta zona é muito boa. Vende-se pelo menos por cinco milhões! - eu acredito que, talvez, quem sabe..?

Podia suceder. Improvável, bem sei. Demasiados "ses", cada um mais duvidoso do que o outro. Relendo, com estranheza, o que vim de escrever, quase me apetecia alterar a posição com que arranquei. Superar o in dubio pro reu inicial. Não o faço, porém, porque esta é a parte em que sou menos inocente: aquela em que identifico e desmonto o abuso dos acusadores. Para onde quer que se voltem, por muito que se afine a retórica, trata-se sempre do mesmo: um processo de intenções.

Objectivamente, compra-se um prédio e revende-se o dito por uns quantos milhões a mais. Objectivamente, lembra-se que o homem é vereador (era-o) e que, portanto, estava numa posição que lhe dava conhecimento privilegiado. Costuma acrescentar-se que se trata de um vereador com um suplemento de responsabilidade, em representação de um partido que se assume como campeão de virtudes, e combate furiosamente a especulação imobiliária. Mais um pouco, e também se apontaria o facto de ser jovem e bem-apessoado. Ou seja (e isto é uma falácia a que não resisto): que pareça que um jovem bonito teve um acto de incoerência moral (não legal, porém) é demasiado suculento para que os corruptos do costume, cinicamente, não lhe espetem o dente.

E à parte isto, nada. Nada real, nada palpável. Queria Robles, efectivamente, aproveitar-se da sua situação? Neste "querer", nesta "premeditação", se joga tudo quanto importa.
Lamento que tenha sucedido. Pergunto-me como é possível os outros, que não eu, políticos atentos e experientes, caírem nas mesmas argoladas em que eu cairia. Bem sei que os militantes dos partidos que exigem ética são como a mulher de César: não lhes basta ser sérios; têm de o parecer. E não me esqueço de que Salazar afirmava: em política, o que parece, é. Mas Salazar não foi nenhum modelo. Nem César, já agora. Por mim, recuso os processos de intenção, sobretudo os que liquidam o carácter e a vida pública das pessoas.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

MÁRIO SOARES



Vou evitar pronunciar-me acerca do homem concreto, apesar do título desta crónica, porque, ao contrário do que se tem ouvido, não me parece que seja verdadeiramente a pessoa que está em causa quando se discute se os seus restos mortais deverão ter honras de Panteão Nacional, apenas dois anos volvidos sobre o falecimento. [Até agora, deveria mediar o tempo de 20 anos].

O seu lugar na História do regime, como fundador da actual democracia, é inequívoco. Não se segue, daí, o apregoado «consenso» sobre a figura, ou a aprovação dela e a admiração por ela em que  todos os portugueses seriam unânimes. Aliás, estou ansioso por conhecer as posições do PCP e do BE, que antecipo que possam reflectir precisamente essa falta de consenso. Mas o problema não se reduz a isso. A proposta não tem que ver com o mérito do dr. Mário Soares. Revela outra coisa, quaisquer que sejam os pretextos e a retórica disparados: revela a necessidade de, simbolicamente, a "classe" política se reconhecer e se validar. O que significa é que, sob a aparência de uma dignificação da pessoa, por causa do que terão sido os seus feitos extraordinários como estadista, se quer honrar o próprio regime. São os eternos partidos ao centro, PS-PSD, que se adiantam para assumir a herança; são os Calha, os Bota, os Belém, os César, os Zorrinho e os Negrão desta vida, que, como de costume, se preparam para votar, em causa própria, uma lei que distingue os políticos dos restantes cidadãos. Porque agraciar o dr. Soares implica essa alteração legislativa que, para não ser precisamente um carapuço que sirva a uma cabeça única, acaba por abranger todos os estadistas. Não os escritores, professores ou bombeiros, não os futebolistas, militares ou actores, não os caça-vampiros, críticos ou cineastas, ou médicos, ou engenheiros, ou ciclistas, portugueses, de valor excepcional. Esses terão de continuar a esperar 20 anos (como é normal a fim de que haja distanciamento), para poderem entrar no clube. Apenas os estadistas.

Em rigor, percebemos que a nova lei, se a aprovarem, não implica que os tais estadistas, os "ilustres estadistas" (tenho vontade de reler Lisboa em Camisa) terão direito à entrada no Panteão, automaticamente, e em bloco, ao fim de 2 anos da morte. Melhor fora, caramba! Abre-se-lhes essa possibilidade, tendo sido portugueses fora de série. Ainda assim, porquê? É um gesto, repito, que os políticos profissionais (os mesmos que, sempre em nome da dignidade da carreira política em Portugal, decidem dos seus ordenados e dos extras, ou das condições da sua reforma), ousam, porque entendem que o país inteiro se deve vergar ao seu valor e ao valor do regime, na forma dessa trasladação imediata, que a lei não previa, do sr. dr. Mário Soares, para o Panteão Nacional.

Afirmava um comentador, com quem, de resto, discordo amiúde, que a Assembleia mostra, assim, o seu amadorismo. Espero que o seja. Porque se não se tratar de ingenuidade e amadorismo, só pode ser prepotência.

terça-feira, 3 de julho de 2018

DO HUMOR E DO PRECONCEITO


Uma razão acrescida para eu apreciar Ricardo Araújo Pereira, como se não lhe bastasse ser inteligente, ter muita piada, uma cultura vasta e variegada e uma excelente capacidade de utilização da nossa língua, falada ou escrita, é o facto de esvaziar a ideia comum de que se não pode fazer rir sem se se ceder ao racismo, à misoginia, à xenofobia, à homofobia ou aos diversos rostos fóbicos em que o preconceito se multiplica.

Há tempo, num dize-tu direi-eu facebookiano, alguém se referia, em termos agrestes e com intenção jocosa, à «paneleirice» do Cristiano Ronaldo. Ou "rabichice", ou "bichice", o que, enfim, vai dar ao mesmo. Como me atrevesse a retorquir que, num jovem como ele, essa questão devia ser o que menos importava, ganhei imediatamente o rótulo de puritano. O meu comentário incomodou, como é evidente, ou não haveria necessidade de me integrarem tão ostensivamente no rol dos pavorosos defensores do politicamente correcto, essa gente enfezada e irritadiça, incapaz de pôr um pé em ramo verde, gozar uma boa gargalhada ou um bom charuto, uma pinga, alimentos gordos ou uma piada racista. E, claro, a tese acerca do que eu não conseguia compreender, subjacente ao acto de me rotularem, era a de que se pode dar largas ao humor preconceituoso sem, contudo, se ser uma pessoa preconceituosa. Rir de anedotas de alentejanos sem que isso signifique depreciar efectivamente os alentejanos, de quem, na verdade, se seria até muito amigo, ou de graças sobre mulheres, pretos ou paneleiros, não tendo, no fundo e na prática, o menor vestígio de uma atitude discriminatório. Criar-se-ia, portanto, um mundo à parte: quando se trata de reinar, ou seja, de fazer rir (era assim que a coisa funcionaria), vale tudo, e nada realmente pode ser levado a sério. Ou a mal.

Vou surpreender-vos. Em teoria, concordo com a tese. O gozo de uma piada racista não identifica um racista, e por aí fora. Porém, como em tudo, há que não descansar sobre a ideia. Na prática, nós sabemos discernir. Não existem regras absolutas na matéria, mas, que diabo! claro que alguns ditos, alguns comentários, algumas formas de fazer humor, são reveladores. O facto de ter muitos amigos pretos ou homossexuais não me salva. E diria, sobretudo, que usar o facebook, esse autêntico albergue espanhol, esse lugar de todos os equívocos e todas as interpretações, como meio onde propago e propagandeio afirmações em que, depois, não quero que reconheçam a minha identidade ideológica, parece, no mínimo, uma escolha desastrada.

Não pretendo um mundo sem sentido de humor, ou de humor desinfectado e aparado, com censores e vigilantes em todas as esquinas. Nada tem sido tão nocivo para o cultivar do que quer que seja complexo e profundo, como a aridez unidimensional do politicamente correcto. Ainda assim, não pactuo com estas duas ideias absurdas como conclusão das premissas que enunciei: que o preconceito é a única veia da graça; e de que, tratando-se de ter piada, vale tudo, seja qual for o momento, e sejam o lugar e o meio quais forem.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

A ESQUERDA, A DIREITA E A DESPENALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA


Não preciso de ser religioso ou de direita para pensar que uma vida, cada vida, é um riquíssimo encontro de características únicas, irrepetíveis, que a geram e a mantêm. Uma vida, cada vida, é um manancial de possibilidades. Um "dom", realmente - talvez não de Deus, se não creio, mas da natureza ou simplesmente do acaso.

Não preciso de ser um conservador para olhar com espanto e admiração para esta génese de uma qualquer vida, uma existência que poderia não ter sido, e no entanto é; adveio; aconteceu; tornou-se um facto.

O ponto é, portanto, que não preciso de ser um homem enquistado em preconceitos (culturais, religiosos, políticos), para, perante este milagre que é uma vida, cada vida, qualquer vida - uso deliberadamente, e sem me contradizer, o termo milagre -, considerar que se trata sempre de um trágico desperdício e de um empobrecimento decidirmos, sejam quais forem as razões, pôr termo a esse facto irrepetível e único.

Por outro lado, também não preciso de ser um ateu confesso e um velho anti-clerical para perceber que existem situações de sofrimento que nem me atrevo a tentar imaginar. Não preciso de ser um materialista para quem a vida em nada mais consistiria senão num agregado de átomos que se teria acendido, para entender que há vidas que perderam o seu carácter de "dom" e de "milagre", tendo-se transformado num fardo horroroso e humilhante para o sujeito.

O pecado da direita é que tende a impor a sua crença e comportamentos a todos, de acordo com uma fé. A possibilidade da escolha, nos outros, parece-lhe sempre imoral. Aliás, o problema da esquerda não difere muito do que vim de enunciar: indigna-se demasiado com as posições antagónicas, incompreendendo-as, como se não houvesse razões, ou estas razões pudessem ser sistematicamente reduzidas a uma colecção de preconceitos.

A minha posição acerca da eutanásia, contra ou a favor, não deve ver-se em primeiro lugar como uma escolha que me define politicamente. É uma opção ética. No meu espírito debatem-se mais hesitações, mais dilemas, mais reflexões acerca do que é moralmente melhor ou pior, ou menos mau, do que aqueles que caibam na mera catalogação em termos de esquerda/direita: como se a eutanásia fosse propriedade da esquerda, ou ser-se coerentemente de esquerda implicasse defender a eutanásia, e ser de direita me obrigasse a recusá-la.

Compreendo tudo aquilo de que me falam uns e outros. O valor da vida, o horror do sofrimento, a dignidade, a indignidade. Procuro imaginar uma existência que se degradou irreversivelmente. Que deveio sacrifício e peso extremos. Como se esperaria, custa-me não admitir, então, o direito - este termo nunca soa bem -, o direito, que em cada um deveria ser respeitado, à decisão de uma morte assistida, uma vez que, precisamente, a vida se transformou numa não-vida. Soa fácil negar a possibilidade dessa escolha, quando não se experimenta pessoalmente, nem se convive, com alguém numa situação em que ela, terrível e derradeiramente, faria sentido. Mas, ao mesmo tempo, temo a ideia de que matar possa alguma vez ser uma solução. Temo uma espécie de banalização da morte e da vida que essa lógica contém. Temo o assumir do acto radical, que é liquidar uma pessoa, como, paradoxal e perversamente, a derradeira forma de respeitar a vida e a dignidade de alguém.

Mas a mesma razão por que discordo da pena de morte (como um putativo direito de a sociedade dispor da vida de um indivíduo que tivesse praticado um crime para além de todo o perdão), e a mesma razão por que me custa aceitar o suicídio, sabendo embora que se trata da própria vida, e ainda que fosse um caso de tremendo desespero, ou seja, as razões que me incomodam no dispor da vida, sua ou de outrem, ofuscam-me a clareza da decisão; esta dificuldade será tão-só um problema meu? Interrogo-me sobre a fabricação de convicções tão lineares, que por todo o lado testemunho, tão sem arestas, tão simples, tão dogmáticas, tão sem nenhuma dúvida - de facto, tanto entre representantes de pró como de contra a despenalização.

Não venho, já certamente deduziram, argumentar sobre o que é melhor, porque me dilacera a questão, sensível e complexa. Debato-a comigo próprio. Mudo de ideias. A cada momento. Ambas as posições me chocam.

Argumento, portanto, contra a simplicidade com que se chega a uma certeza; e como, do alto da sua superior e civilizada certeza, se incompreende o outro. A interpelação a António Filipe, do PCP, por Mariana Mortágua, do BE, é um exemplo completíssimo da atitude que venho de referir: reduz-se o outro e a sua consciência ou a uma mera etiqueta política, ou a um erro.

sábado, 19 de maio de 2018

ELOGIO (COMEDIDO) A BRUNO DE CARVALHO


De mim foi sendo formado, desde criança e por tradição familiar, um vivo e vibrante simpatizante do Sporting. Sou, evidentemente, um vago sportinguista; nanja um fanático: não me associei, não vou a jogos, não sofro de ataques cardíacos por causa de uma derrota do clube.

Sempre considerei Bruno de Carvalho (e Jorge Jesus também) duas nódoas no Sporting. Sobretudo o primeiro: o estilo truculento, o egocentrismo hiperbólico, as suspeitas, que de há muito e persistentemente o acompanham, de que faria circular dinheiro sujo (mesmo que não se justificassem, torná-lo-iam  sempre uma companhia a evitar, hélàs!), mostram o Presidente do SCP como um homem explosivo e conflituoso, que contribuiu (aliás juntamente com os outros dirigentes dos principais clubes de futebol português), para que o futebol piorasse muito como palco de guerras santas insanas, corrupções, difamações, infâmias várias. Ou seja: sou absolutamente insuspeito de simpatia por Bruno de Carvalho.

Isto dito, porém, ouvindo-o na sua conferência de imprensa (e trato de descontar tudo quanto nas suas palavras revela manipulação e demagogia), tomo consciência de que, de facto, em torno de si se orquestrou uma campanha miserável. Oh, não, não sou ingénuo. É BC que me recorda com justeza como antigos amigos e inimigos de sempre se unem, indiferentes à verdade dos factos, para o responsabilizar pelo assalto à Academia de Alcochete. Foco-me nesta acusação. Tocou-me, confesso, o modo como sublinhou que, na altura em que (segundo as acusações) estaria reunido com cabecilhas dos energúmenos "para dar o aval à invasão", as suas preocupações eram bem de outra índole: saber se a filha sobreviveria a uma intervenção. Não estou a ser irónico. Sensibilizou-me. Eu sei, eu sei, eu sei. Dir-me-ão, com certo cinismo: "É de fazer chorar as pedras da calçada!" Dir-me-ão, sem dúvida: "Separemos, das questões pessoais, a substância da acusação; evitemos amalgamar, pois na amálgama principia precisamente o uso demagógico dos sentimentos." O ad misericordiam.
Não estou de acordo.
Neste caso, uma vez que tantos ataques se desencadearam contra a pessoa, parece-me importante ter presente que estwmos a falar, pois, de um homem: não se visou apenas o Presidente, mas o sujeito, não apenas a gestão do cargo, mas a honorabilidade da pessoa. Acredito que um homem que vive um tempo de aflição pela vida da sua filha não pode ser, no momento em que se consome com esta preocupação, o maquinador, o maquiavélico mandante de um acto criminoso contra os seus próprios jogadores. Custa-me a crer. Nem Bruno de Carvalho seria tão frio.

Mas não só isso. Assisti, depois da conferência, aos comentários dos jornalistas televisivos. Verifiquei que as interpretações já falseavam o que BC tinha realmente dito, ou lhe deturpavam provavelmente a intenção. O que me faz pensar que o homem tem razão quando fala de campanha. Há uma deturpação sistemática das suas palavras. Sei do que falo. Segui essa refracção sofrida pelo que foi dito pelo Presidente, sob efeito do líquido em que o mergulharam os comentadores. Na CMTV, alguém se insurgia pelo facto de Bruno de Carvalho decidir não estar presente no Jamor. E alegava-se, hipócrita e falaciosamente: "Quem não deve, não teme" - esquecendo com uma conveniente precipitação que, quando se pensava que o homem, na sua usual obstinação, não deixaria de ir, era praticamente unânime que não deveria fazê-lo. E apesar de o próprio haver esclarecido que optava pela ausência contra vontade, para evitar embaraços aos órgãos de soberania. O que se compreende, atendendo às palavras de Marcelo Rebelo de Sousa. Ou seja: preso por ter cão, preso por não ter.

Finalmente, criticava-se agudamente o facto de, na conferência, Bruno de Carvalho ter "disparado em todas as direcções",  apontando o dedo a Patrício e, portanto, comprometendo, uma vez mais, a tranquilidade psicológica dos jogadores na véspera de um jogo decisivo. Eu não vi apontar o dedo a Rui Patrício: vi lembrar que a origem do confronto em Alcochete fora uma "rixa" entre alguns jogadores, entre os quais Patrício, e elementos da claque, furibundos por que o Sporting tivesse perdido o jogo que lhe garantiria o 2° lugar. E pelo contrário, Bruno de Carvalho mostrou compreensão pela reacção do guarda-redes, embora não esquecesse também o perigo da sua atitude e falta de noção das proporções do que inadvertidamente iniciara. Foi uma explicação, não uma acusação.

Alguma das minhas palavras revela que eu tenha passado a gostar de Bruno de Carvalho? De modo nenhum. O seu estilo é um cancro no futebol. Como o de Vieira ou de Pinto da Costa. O ordenado que se auto-propôs é absolutamente escandaloso. A prazo, a sua gestão foi terrível. O Sporting merece mais, merece muito melhor. Ainda assim: tenho poucas dúvidas de que essa vergonha do jornalismo que é o Correio da Manhã, mais o seu CMTV, e pasquins afins, em colaboração, pelo menos objectiva, com pessoas a quem o Presidente do Sporting, no seu tom arruaceiro, tem feito mossa, construíram uma teia de ataque sistemático à pessoa, pelos meios mais sórdidos e infames. O homem é mau e prestou um mau serviço ao clube. É louco e arrogante. Mas não está provado que seja um criminoso, a não ser nas páginas dos jornais e nas bocas dos comentadores televisivos e dos conversadores de café.

domingo, 13 de maio de 2018

SOBRE O FESTIVAL DA CANÇÃO 2018


Primeiro ponto: insurgem-se, os habituais detractores, contra o que lhes pareceu um regresso de Portugal ao passado triste, com a exaltação do futebol, de Fátima e seus peregrinos, da Eurovisão e, portanto, do fado, se atendermos ao humilhante último lugar como o retorno ao fado do português-perdedor.
Sucede que a Eurovisão não se reduz ao passado. É uma noite de disputa entre canções de muitos países, que leva espectadores de toda a Europa a sentarem-se diante dos seus televisores, ouvindo falar, nem que brevemente, acerca dos seus vizinhos geográficos, e comparando apresentações que, se não reflectem a cultura de cada país (eu sei, eu sei: quase todas em inglês, e segundo um modelo melódico mui "mainstream"), representam o gosto de uma maioria de pessoas nesse país. Mais: para Portugal, que recebeu em casa o espectáculo, e o preparou, foi a oportunidade de abrir as portas a turistas ansiosos, e de mostrar que tem pessoas experientes, conhecedoras, competentes, engenhosas, capazes de montar um evento televisivo de nível internacional.

Segundo ponto: termos ficado em último lugar foi um embaraço com que não vale a pena gastar mais latim. Nunca dei um chavo por esta cançoneta. Mas a verdade é que também, o ano passado, o Salvador me parecia um medíocre (às vezes continua a parecer-me), e no entanto conseguiu uma vitória absolutamente arrebatadora. Passemos adiante.

Terceiro ponto: a canção que venceu, o Toy, da Netta, carrega um equívoco que tem criado raízes. Não podemos gostar todos das mesmas coisas. Admitamo-lo tranquilamente. Mas aquilo que na canção a tornou vencedora, não tem que ver com a sua "diferença". Ou seja, nunca foi o facto de ser cantada por uma mulher que escapa aos padrões, como a própria assinala insistentemente. O que marcou não se deveu em nada ao carácter de cisne negro da mensagem, ou de patinho feio da cançonetista. Bem pelo contrário: triunfou por ser a mais comum e a mais kitsch; triunfou o tom popularucho e fácil, que em Portugal se chama pimba, o mau-gosto na roupa de Netta, nos trejeitos exagerados, na coreografia e na música. Não podemos gostar todos do mesmo. Mas somos capazes de perceber quando se nivela por baixo. E de que, sob a falsa capa da "diferença", assistimos ao triunfo do um-dó-li-tá.