sexta-feira, 1 de junho de 2018

A ESQUERDA, A DIREITA E A DESPENALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA


Não preciso de ser religioso ou de direita para pensar que uma vida, cada vida, é um riquíssimo encontro de características únicas, irrepetíveis, que a geram e a mantêm. Uma vida, cada vida, é um manancial de possibilidades. Um "dom", realmente - talvez não de Deus, se não creio, mas da natureza ou simplesmente do acaso.

Não preciso de ser um conservador para olhar com espanto e admiração para esta génese de uma qualquer vida, uma existência que poderia não ter sido, e no entanto é; adveio; aconteceu; tornou-se um facto.

O ponto é, portanto, que não preciso de ser um homem enquistado em preconceitos (culturais, religiosos, políticos), para, perante este milagre que é uma vida, cada vida, qualquer vida - uso deliberadamente, e sem me contradizer, o termo milagre -, considerar que se trata sempre de um trágico desperdício e de um empobrecimento decidirmos, sejam quais forem as razões, pôr termo a esse facto irrepetível e único.

Por outro lado, também não preciso de ser um ateu confesso e um velho anti-clerical para perceber que existem situações de sofrimento que nem me atrevo a tentar imaginar. Não preciso de ser um materialista para quem a vida em nada mais consistiria senão num agregado de átomos que se teria acendido, para entender que há vidas que perderam o seu carácter de "dom" e de "milagre", tendo-se transformado num fardo horroroso e humilhante para o sujeito.

O pecado da direita é que tende a impor a sua crença e comportamentos a todos, de acordo com uma fé. A possibilidade da escolha, nos outros, parece-lhe sempre imoral. Aliás, o problema da esquerda não difere muito do que vim de enunciar: indigna-se demasiado com as posições antagónicas, incompreendendo-as, como se não houvesse razões, ou estas razões pudessem ser sistematicamente reduzidas a uma colecção de preconceitos.

A minha posição acerca da eutanásia, contra ou a favor, não deve ver-se em primeiro lugar como uma escolha que me define politicamente. É uma opção ética. No meu espírito debatem-se mais hesitações, mais dilemas, mais reflexões acerca do que é moralmente melhor ou pior, ou menos mau, do que aqueles que caibam na mera catalogação em termos de esquerda/direita: como se a eutanásia fosse propriedade da esquerda, ou ser-se coerentemente de esquerda implicasse defender a eutanásia, e ser de direita me obrigasse a recusá-la.

Compreendo tudo aquilo de que me falam uns e outros. O valor da vida, o horror do sofrimento, a dignidade, a indignidade. Procuro imaginar uma existência que se degradou irreversivelmente. Que deveio sacrifício e peso extremos. Como se esperaria, custa-me não admitir, então, o direito - este termo nunca soa bem -, o direito, que em cada um deveria ser respeitado, à decisão de uma morte assistida, uma vez que, precisamente, a vida se transformou numa não-vida. Soa fácil negar a possibilidade dessa escolha, quando não se experimenta pessoalmente, nem se convive, com alguém numa situação em que ela, terrível e derradeiramente, faria sentido. Mas, ao mesmo tempo, temo a ideia de que matar possa alguma vez ser uma solução. Temo uma espécie de banalização da morte e da vida que essa lógica contém. Temo o assumir do acto radical, que é liquidar uma pessoa, como, paradoxal e perversamente, a derradeira forma de respeitar a vida e a dignidade de alguém.

Mas a mesma razão por que discordo da pena de morte (como um putativo direito de a sociedade dispor da vida de um indivíduo que tivesse praticado um crime para além de todo o perdão), e a mesma razão por que me custa aceitar o suicídio, sabendo embora que se trata da própria vida, e ainda que fosse um caso de tremendo desespero, ou seja, as razões que me incomodam no dispor da vida, sua ou de outrem, ofuscam-me a clareza da decisão; esta dificuldade será tão-só um problema meu? Interrogo-me sobre a fabricação de convicções tão lineares, que por todo o lado testemunho, tão sem arestas, tão simples, tão dogmáticas, tão sem nenhuma dúvida - de facto, tanto entre representantes de pró como de contra a despenalização.

Não venho, já certamente deduziram, argumentar sobre o que é melhor, porque me dilacera a questão, sensível e complexa. Debato-a comigo próprio. Mudo de ideias. A cada momento. Ambas as posições me chocam.

Argumento, portanto, contra a simplicidade com que se chega a uma certeza; e como, do alto da sua superior e civilizada certeza, se incompreende o outro. A interpelação a António Filipe, do PCP, por Mariana Mortágua, do BE, é um exemplo completíssimo da atitude que venho de referir: reduz-se o outro e a sua consciência ou a uma mera etiqueta política, ou a um erro.