sábado, 20 de novembro de 2021

DA METAMORFOSE DOS PÁSSAROS

 Estou como só em face do filme que não sei se conseguirei compreender na totalidade, tais os prémios, os elogios da crítica e dos meus amigos, a tensão da expectativa, o desejo de nada deixar escapar. "Só", porque, não tendo podido ir a nenhuma das sessões em que a Catarina e algumas pessoas relevantes na cultura portuguesa me pegassem pela mão e me ajudassem a olhar, conto apenas com os meus olhos e a minha sensibilidade.


Imergindo - a imersão é,  aliás, uma imagem forte, em dois momentos e com dois protagonistas diferentes: ou a imersão de uma, que emerge como outro -, a primeira perplexidade, diria a primeira tremenda perplexidade com que me debato, é esta: como pode tamanho sofrimento estar na origem de tamanha beleza? Conheço outros casos. A arte é pródiga em exemplos de arrancar beleza à dor. Mas alguma coisa na nudez deste sofrimento, em "A Metamorfose dos Pássaros", pelo facto de não haver "personagens", mas "pessoas", reunidas na generosidade de um testemunho sentido e na tentativa de reconstrução de uma história de perda(s) que viveram, tornaria a beleza quase impossível. E contudo, ela é a substância destas imagens e da sua verdade. 


Uma segunda perplexidade - não sei de que ordem, se técnica, se estética - tem que ver com o modo como se casam estas diferentes linguagens, sem que, verdadeiramente, nenhuma seja a mera serva da outra: o texto, profundo, belo, que unifica as imagens, não é um seu instrumento, nem elas se lhe subordinam. E não coincidem exactamente no tempo: um instante antes da fala que a verbaliza, a imagem já se mostrou, na sua intensidade plástica, nas suas cores que nos cegam, pronta a diversas interpretações em que a voz, imediatamente a seguir, exercerá uma escolha, uma configuração, um sentido.


O sentido é em certa medida uma reinvenção de um passado. O que é o passado, o que sucedeu efectivamente? Espera, Catarina, as coisas não se passaram bem assim, diz em certo momento o pai. Mas que importa? E que importa que se dê a esse pai outro nome, por respeito pela inteligibilidade, evitando que nós, espectadores, nos percamos em mais do que um Henrique? A dor é verdadeira. E o filme trasmite-no-la incólume, a ponto de nos esmagar. As diferentes dores, aliás: pela morte da mãe/avó, e pela morte da mãe da Catarina, que parece repetir a anterior, mas é sempre única, terrível; e a dor de cada um dos que sobreviveram, que não pode ser realmente partilhada.


A fragilidade dos corpos é comovente, perante o sublime do sofrimento. A fragilidade do corpo de Catarina, quando a vemos tão vulnerável,  ou a dos corpos de seu pai e dos irmãos quando se reúnem para queimar a correspondência, demasiado íntima, entre o pai e a mãe deles. Como se faz? O que se guarda, e como? Que sentido, fiel ou em parte criado, se pode preservar?


Por uma poética ironia, fazia-me alguém notar, o desaparecimento da correspondência não impediu que as vozes gravadas da avó e do pai e dos tios de Catarina, num disco então enviado ao avô, em alto mar, com que o filme termina, persista como uma parte indestruída desse passado. Bem como as falas da mãe de Catarina, visitando-a, em diálogos cheios de ternura e de humor (e de espanto pelos preços das casas em Lisboa, ou pelos telemóveis sem teclas). Como se, mais do que uma fantasia, fosse a expressão de uma intimidade que nenhuma morte destruiu.

As plantas de sua mãe, invadindo e tomando conta da casa, são uma prova para quem ainda duvidasse.