segunda-feira, 7 de março de 2022

UCRÂNIA

 Quando olhamos à volta (ou em frente, directamente para a tv em hora de noticiário) e assistimos às notícias sobre forças russas que invadem a Ucrânia, famílias em desesperada fuga, a iminência da III Guerra Mundial, torna-se difícil não nos sentirmos atraídos pelas explicações dos repórteres e dos comentadores, como insectos pela luz. Ora a essa luz, a luz das interpretações que nos vão pondo diante dos olhos e nos fazem entrar pelos ouvidos, como se os media ocidentais fossem independentes e livres, tudo se torna linear, e é difícil não vermos o mal absoluto de um lado, tanto mais que Putin se presta à personagem de Darth Vader e, do outro lado, os ucranianos, como democratas indefesos, às mãos do temível "oligarca" (outra palavra que desatámos todos a usar, tal como bruscamente, na pandemia, aprendêramos a empregar o antes raro e quase desconhecido "comorbilidades".)

Daí que fervamos de indignação em face da cegueira do PCP, que foge à única narrativa que nos parece tolerável. Eu sei. O Partido Comunista irrita na sua monótona previsibilidade. Sejam os dados quais forem, o culpado é sempre o mordomo, ou, no caso, não um mordomo, mas o magnata de quem somos todos, países europeus, os mordomos.

Quanto mais escarafuncho, porém, mais vou lembrando ou descobrindo que a história é menos simples do que aquilo que a nossa necessidade de escolher um partido busca; que os nazis, não tão numerosos como Putin dá a entender na justificação do seu acto de guerra, contudo, existem perigosamente na Ucrânia: o Batalhão Azov é um facto, e a sua ideologia expõ-se, longe de complexos ou culpas, assumidamente como neonazi; que o governo ucraniano perseguiu de forma sistemática os habitantes russos no país. Nada dá razão a uma invasão: olhar para Putin como se fosse um salvador e um libertador seria estar a contar anedotas ao diabo. Mas num tecido histórico e geográfico muito tenso, sobre conflitos em que nos demos ao luxo de não reparar, perante um periclitante equilíbrio entre potências nucleares, o que acontece tem vértices, e espinhos, e responsabilidades de que as reportagens não sabem, ou não querem dar conta.

Seria necessário, no modo como pensamos acerca disto e do que fazer, que fôssemos capazes de tudo tomar em consideração. Que fôssemos capazes de estabelecer como prioridades 1) parar a guerra, o que não implica, nem deve implicar, qualquer apelo para que a Ucrânia se renda, acrecento-o de forma a  não subsistirem equívocos; 2) proteger os cidadãos ucranianos, medicando, alimentando, recebendo e abrigando, sem baixar, contudo, guarda, isto é, nunca deixando de discriminar ou de manter as críticas ou as exigências perante a presença de elementos repressivos e nazis que o governo da Ucrânia normalizou e vem utilizando (e nunca fazendo de conta de que isso, e a repressão sobre as franjas russas ou russófilas, nunca existiu na Ucrânia); e não, não me venham dizer que, ao assinalar este aspecto, confundo prioridades ou faço equivaler os dois lados, como se me esquecesse de que existem aqui, efectivamente, um invasor e um invadido. Não confundo, nem o faço: lembro que o apoio não significa varrer para debaixo do tapete o de que não convém falar. Quando muito, pois, pergunto por que razão, para a maioria dos defensores da Ucrânia, essa questão parece não existir; e 3) não desconsiderar nem humilhar a Rússia, não por medo do bully, mas porque a história foi, naquela região, uma história de desrespeito e ameaças de parte a parte, de reacção ao medo e à provocação, de equívocos, tanto como de uma visão imperial e de aspiração ao controlo dos recursos energéticos.

O rigor de, numa análise, querer ver tudo e nada deixar de lado, passa, muitas vezes, por ambiguidade e cobardia. Diria que, nestes tempos, é justamente o contrário.