sexta-feira, 14 de outubro de 2022

DA FALTA DE NOÇÃO E DO CRISTIANISMO

 1. Estou sentado numa espécie de banco de jardim; medito sobre como principiar cuidadosamente esta crónica, de forma a, em simultâneo, relacionar situações muito diferentes, que me têm perturbado e feito reflectir nos últimos dias, expor sem superficialidade aquilo que penso, mas, ainda, opor-me a ideias e pessoas credíveis e amadas, sem que considerem que as deprecio, nem as ferir. A tarefa afigura-se-me excessiva e complexa.

Primeiramente, teria de me referir ao que cada vez mais se designa por "falta de noção": observo muitos humanóides destituídos da mais elementar noção, mas como compreender essa ausência, quando os sujeitos são pessoas que prezo, ou quando considero o mar ideológico  em que se banham, meritório e respeitável? Trata-se de um problema. Sou, então, obrigado a lembrar que a "falta de noção" tem que ver com o não reconhecimento (obtuso, parece sempre), de limites. Mas por que teriam os meus limites, ou os do meu grupo, morais ou do bom-gosto e do bom-senso, devir o padrão, o critério universal? Sem querer cair no perigoso e triste relativismo, a presença deste horizonte, deste lembrete, torna-se imperiosa quando, às vezes, nos interrogamos: Mas como raio é que ele não vê (o ridículo das suas palavras ou actos, a imbecilidade, a inexistência de um resquício de pudor ou decoro)?

A visão moral cristã não é estúpida nem superficial. Falo da autêntica visão cristã, não da apropriação que a igreja tradicional dela veio fazendo, reavivando os interditos do Antigo Testamento e o precipitado desejo de julgar outrem; falo, antes, da compaixão, do amor pelo próximo ou de pô-lo primeiro do que a mim mesmo. Julgo que se, em parte, esta visão, ao longo de muitos anos de ditadura, inspirou uma ética da esmolinha e da caridade, num Portugal miserável, e se, entre os mais abastados, não passava de um lenitivo para as suas consciências, que se mordiam, foi, por outro lado, sempre a possibilidade de ajuda em casos concretos, ou de manter acesos ver, ouvirlernão ignorar, em suma, preocupar-se; a - e vou usar uma palavra que conta, hoje, com poucos amigos -, a piedade.

Tudo isto exposto, não consigo, portanto, arrasar uma pessoa como Laurinda Alves. Quando muito, surpreender-me pela sua mudança. Mas, aí, nada de novo: surpreendo-me sempre com o espectáculo de uma pessoa, ainda jovem, tornando-se na reaccionária que nunca propriamente fora. O seu mundo fixou-se: cristão e conservador. Todavia, a sua intenção aspira sempre ao melhor, mesmo quando fantasia uma enorme marcha de mendigos e sem-abrigo. A falta de noção advém, aqui, da inadequação entre a intenção e os meios. A falta de noção resulta de que se pense que, se há tantas marchas (políticas, ou querendo dar a vibrar um grito de orgulho, etc.), por que não uma que confrontasse as conscienciazinhas burguesas com o sofrimento e a carência? 

Por que não? Porque é indigno, claro. Porque os sem-abrigo não são aberrações de feira. O que faltará a alguém como Laurinda Alves para medir isso, para intuí-lo, para ter noção do que há de errado nesta proposta de exposição, ainda que com a melhor das intenções? Em algum aspecto de toda este projecto, paradoxalmente, tem de subsistir uma falha moral, uma incapacidade de perceber que os indivíduos devem ser protegidos e não transformados em figuras de exibição e circo. Tem de subsistir algum desrespeito, no fundo, pelas pessoas concretas, ainda que a sua condição socio-económica nos indigne. Pergunto-me: a falha está contida na própria visão cristã do mundo? É-lhe intrínseca? São coisas diferentes?

2. Do meu ponto de vista (mas creio que esta catalogação não deixará de ser polémica, embora esteja longe de, aqui, pretender ser insultuosa), é no mesmo tipo de formação cristã que, inconscientemente, radica uma crítica generalizada contra a Joana Marques e o seu programa Extremamente Desagradável.

Quando oiço dizer, a pessoas que respeito e sigo com o melhor da minha atenção, que o Extremamente Desagradável roça o bullying e exerce um tipo de humor fascizante, malévolo, em sistemática busca da falha do outro como matéria de troça, a minha reacção mistura demasiados ingredientes em contradição. Por um lado, pergunto-me se estes críticos terão razão, e "perguntá-lo" é já, certamente, a manifestação de uma secreta culpabilidade, uma vez que o programa me faz rir.

Passemos à frente do facto de que, em Portugal, desde o 25 de Abril, aprendemos a usar com certa imoderação, convertendo-as em insultos, palavras formadas a partir de "fascista" (fascistóide, fascizante...); ainda me recordo de um colega que gostava de citar - espero que errónea ou descontextualizadamente - Roland Barthes, para me dizer que "a linguagem é fascista."

Esmiuçando um argumento que acabei de ler, tento compreender por que razão uma amiga minha afirma ser necessariamente malvadez ridicularizar alguém que teve menos oportunidades, ou instrução, ou meios, do que eu. Posso fazer crítica de costumes, aventa, sem nomear. O pecado reside em apontar. Sobretudo, tomando, por objecto, gente "vulnerável" (intelectual, social, cultural, economicamente).

É a visão cristã. Bondosa e incapaz de humilhar ou rebaixar. Ao mesmo tempo, há que acrescentar: trata-se de uma visão piedosamente sobranceira - nunca rir dos pobres de porventos nem dos pobres de espírito. Entendo. Sem ironia: entendo, realmente. Onde me parece que o argumento claudica? No facto de que Joana Marques se mete com pessoas que, de uma ou de outra forma, têm sucesso, poder, influência; triunfam neste mundo frágil e estranho, que nos domina, de algum modo, a todos: genericamente, as redes sociais. Um participante do Big Brother, por exemplo, não é apenas un abruti. Nem tão-só um homem ou uma mulher que profere inadidades e expressa preconceitos, reduzindo o mundo a uma dimensão única. Mas um homem ou uma mulher que fazem cabeças, influenciam, assumiram-se como modelos sociais. Ou seja, numa sociedade em mudança contínua e global, as classes culturais já não são células estanques. Como se, pertencendo, pelo nascimento, a esta, se tornasse de mau-gosto e moralmente inadequado gozar com os daquela, a quem, coitados! não fora oferecida, de bandeja, a mesma educação. Talvez não, mas a verdade é que eles próprios deram em educadores. Vendem lições. Escrevem livros de auto-ajuda. Entram-nos pela TV. Viajam para entrevistar o Bolsonaro himself e, não o conseguindo, conversam, pelo menos, com a Maria Vieira. Onde raio os vai Joana Marques buscar? Onde diabo os descobre? Retira-os, cruelmente, ao anonimato? Eram donas de casa sossegadas, cidadãos pacatos, ouvidos, por acaso, numa taberna, a discutir, preconceituosamente, os ciganos, a política, o futebol? Ora reparem melhor. Estão aí, por toda a parte, como zombies, revelando a sua vaidade, o seu senso-comum tacanho e os erros de Português. 

Num dos últimos Extremamente Desagradável Joana Marques debruçou-se sobre Rita Pereira, a propósito de uma conversa entre ela e Cláudio Ramos e Maria Botelho Moniz, num programa da TVI. Não quero mal a Rita Pereira. Nem me move a inveja, porque nada do que RP conquistou me interessa. Não sei se parece feio achincalhar-lhe o discurso. Mas, que diabo!, são as palavras dela, num momento televisivo com centenas de tele-espectadores. Ou milhares, não sei. Não se pegar na falta de noção e na imodéstia da actriz, no orgulho, patente, por se achar superior (e incompreendida), ou na franqueza de nos jurar que os seus detractores o são, porque ela está "aqui" e eles não", conquistou "o mercado, e eles não", conquistou "o mundo, e eles não", seria perder o potencial crítico e, até, pedagógico, do humor. Não se trata de rirmos de um lapso, de uma queda, de um erro. Mas de rirmos de um discurso cheio de si e de um olhar egocêntrico e auto-indulgente sobre si-no-mundo. O discurso poder invadir-nos, alastrar, implantar-se, e a crítica dever calar-se para não humilhar o visado, seria a negação de qualquer exercício de humor social e cultural.

segunda-feira, 7 de março de 2022

UCRÂNIA

 Quando olhamos à volta (ou em frente, directamente para a tv em hora de noticiário) e assistimos às notícias sobre forças russas que invadem a Ucrânia, famílias em desesperada fuga, a iminência da III Guerra Mundial, torna-se difícil não nos sentirmos atraídos pelas explicações dos repórteres e dos comentadores, como insectos pela luz. Ora a essa luz, a luz das interpretações que nos vão pondo diante dos olhos e nos fazem entrar pelos ouvidos, como se os media ocidentais fossem independentes e livres, tudo se torna linear, e é difícil não vermos o mal absoluto de um lado, tanto mais que Putin se presta à personagem de Darth Vader e, do outro lado, os ucranianos, como democratas indefesos, às mãos do temível "oligarca" (outra palavra que desatámos todos a usar, tal como bruscamente, na pandemia, aprendêramos a empregar o antes raro e quase desconhecido "comorbilidades".)

Daí que fervamos de indignação em face da cegueira do PCP, que foge à única narrativa que nos parece tolerável. Eu sei. O Partido Comunista irrita na sua monótona previsibilidade. Sejam os dados quais forem, o culpado é sempre o mordomo, ou, no caso, não um mordomo, mas o magnata de quem somos todos, países europeus, os mordomos.

Quanto mais escarafuncho, porém, mais vou lembrando ou descobrindo que a história é menos simples do que aquilo que a nossa necessidade de escolher um partido busca; que os nazis, não tão numerosos como Putin dá a entender na justificação do seu acto de guerra, contudo, existem perigosamente na Ucrânia: o Batalhão Azov é um facto, e a sua ideologia expõ-se, longe de complexos ou culpas, assumidamente como neonazi; que o governo ucraniano perseguiu de forma sistemática os habitantes russos no país. Nada dá razão a uma invasão: olhar para Putin como se fosse um salvador e um libertador seria estar a contar anedotas ao diabo. Mas num tecido histórico e geográfico muito tenso, sobre conflitos em que nos demos ao luxo de não reparar, perante um periclitante equilíbrio entre potências nucleares, o que acontece tem vértices, e espinhos, e responsabilidades de que as reportagens não sabem, ou não querem dar conta.

Seria necessário, no modo como pensamos acerca disto e do que fazer, que fôssemos capazes de tudo tomar em consideração. Que fôssemos capazes de estabelecer como prioridades 1) parar a guerra, o que não implica, nem deve implicar, qualquer apelo para que a Ucrânia se renda, acrecento-o de forma a  não subsistirem equívocos; 2) proteger os cidadãos ucranianos, medicando, alimentando, recebendo e abrigando, sem baixar, contudo, guarda, isto é, nunca deixando de discriminar ou de manter as críticas ou as exigências perante a presença de elementos repressivos e nazis que o governo da Ucrânia normalizou e vem utilizando (e nunca fazendo de conta de que isso, e a repressão sobre as franjas russas ou russófilas, nunca existiu na Ucrânia); e não, não me venham dizer que, ao assinalar este aspecto, confundo prioridades ou faço equivaler os dois lados, como se me esquecesse de que existem aqui, efectivamente, um invasor e um invadido. Não confundo, nem o faço: lembro que o apoio não significa varrer para debaixo do tapete o de que não convém falar. Quando muito, pois, pergunto por que razão, para a maioria dos defensores da Ucrânia, essa questão parece não existir; e 3) não desconsiderar nem humilhar a Rússia, não por medo do bully, mas porque a história foi, naquela região, uma história de desrespeito e ameaças de parte a parte, de reacção ao medo e à provocação, de equívocos, tanto como de uma visão imperial e de aspiração ao controlo dos recursos energéticos.

O rigor de, numa análise, querer ver tudo e nada deixar de lado, passa, muitas vezes, por ambiguidade e cobardia. Diria que, nestes tempos, é justamente o contrário.