quinta-feira, 19 de outubro de 2017

DA HABILIDADE POLÍTICA À GRANDEZA MORAL



Tem, naturalmente, de se pensar em tudo isto. Primeiro, pareceu-me adequado que a Ministra se demitisse. Não por ser a culpada de tudo quanto aconteceu, mas por ser o rosto imediato de uma responsabilidade que a transcende: uma responsabilidade que tem, até, muitos anos, e é politicamente transversal; ora, se é justo e inovador o discurso do governo, segundo o qual importa mais encontrar soluções do que pedir cabeças, a verdade é que esta Ministra, desgastada, desacreditada aos olhos de muitos portugueses, já não tinha condições de se manter como a pessoa indicada para emendar erros, propor soluções, dinamizar órgãos e pessoas em torno do problema. Retirou-se, aliás, em termos que lhe asseguram a dignidade.

Em segundo lugar, como se explica esta concentração, quase apetecia escrever, concertação de incêndios em tamanha extensão e em tão pouco tempo? O calor anormal será, sem dúvida, um factor. A incúria, uma outra. A incúria dos próprios proprietários dos terrenos, que os eucaliptaram, os não limparam, ou os largaram ao abandono. Há muito, porém, que se fala, também, em enigmáticos interesses económicos, que nunca consegui entender. Só que mesmo isso já soa a insuficiente. Oiço e leio, pelas incredíveis redes sociais fora, a tese de uma cabala para destruir a Geringonça.

O que já seria o tipo de teoria da conspiração que me custa aceitar. Haverá coincidências suspeitas, e tornou-se indecoroso o aproveitamento que tem sido feito por uma Direita que já pouco conta: mas aproveitamento, sim, é típico da mediocridade da Direita portuguesa. Revelar-lhe qualquer culpa de outro calibre em acontecimentos que sacrificaram terras e casas, e mataram tantos seres vivos, significa descrer dos homens, olhar para as pessoas como capazes, em nome de pequenos jogos de poder, de uma abismal infâmia. Gostaria de conseguir pensar que é impossível.

Em terceiro lugar, que fazer agora, no curto prazo? Sobra, ao governo, ajustar eficiência e sensibilidade. Ser lesto a conseguir que se regresse à paz e à normalidade, indemnizando, proporcionando acompanhamento psicológico, oferecendo meios para a possível reconstituição das vidas, fazendo um inequívoco acto de contrição.
Faltam gestos de grandeza e de humildade, que restituam a confiança.

 Um gesto sem tibiezas, mais moral do que político. De assunção e reparação. Um gesto de que Marcelo, pelo que se percebe, seria capaz. Um gesto em que um Primeiro-ministro encontraria o tempo certo da sua revelação perante a adversidade. Sem dúvida que as medidas práticas, rápidas e certeiras, são o que mais importa. Mas não se esqueça a importância do psicológico e do simbólico. Nesse particular, Marcelo ensina muito do que se deve fazer, tal como Passos Coelho ensinou, desastrosamente, quase tudo o que se não deve fazer. António Costa é um político hábil. Todos o reconhecem. Aqui e agora, porém, não basta. Será capaz de descobrir, em si, o lado de que o país carece?

sábado, 14 de outubro de 2017

NARRATIVAS


Quero principiar por agradecer ao Eng. Sócrates a reintrodução do termo "narrativa", com o sentido que, aqui, abundantemente empregarei, e que tão conveniente se me mostrará.
Ironizo, é claro. Mas, ainda assim, bastaria este agradecimento inicial para que muita gente desatasse a criticar-me a pretexto das alegadas malfeitorias de Sócrates. Como se a coincidência com ele no uso de um termo, por um inevitável efeito de contaminação, fizesse de mim, necessariamente, um "socrático".

A questão é, neste caso, num reflexo invertido, a mesma: que uma posição seja abusivamente aproveitada por indesejáveis, que lá terão as suas motivações, não nos ensina rigorosamente nada acerca da justeza dessa posição. Se eu dissesse que a Madeira é uma ilha e, porventura, o espírito de Salazar viesse dar-me razão, esse dispensável apoio não me tornaria fascista. Tudo isto a propósito de a manifestação contra a estátua de Vieira ter sido impedida por um bando de skinheads, esses leitores profundos, esses vieiristas confessos. A partir deste momento, pareceria mais difícil amarmos Vieira, a sua prosa, até a sua estátua, sem que nos confundissem com um skinhead.

Visto assim, percebe-se depressa o carácter falacioso do argumento. Arrumado este equívoco, aparentemente menor, mas que tem sido por demais utilizado, o que está verdadeiramente em questão? Ergue-se, no Chiado, uma estátua a Padre António Vieira. Há indiozinhos a seus pés. A cruz erguida em sua mão. Fizeram-se discursos que não ouvi (do Presidente da Câmara, o da República), mas dou de barato que possam ter sido maioritariamente infelizes.

Que simboliza uma estátua a Padre António Vieira, em plena Lisboa, na verdade adequadamente próxima da igreja onde ele pregou? Parece-me claro. Simboliza a homenagem de um país, sim, em 2017, a um escritor que honra a Língua portuguesa, de que foi um dos grandes cultores (o insuspeito Mário de Carvalho considera-o o maior escritor português de todos os tempos, o que pode discutir-se, mas não seria pequena coisa) e um dos retóricos mais estimulantes na História da humanidade. Se isso e o facto de ter pregado a igualdade dos homens, contra a visão do regime e a da ordem religiosa de que fazia parte, não justificam que a estátua não seja, em 2017, um anacronismo, não sei o que justificaria.

Ver, nela, o símbolo do louvor de um "esclavagismo selectivo", ou a apologia da pretensa "excepcionalidade do luso-colonialismo", só pode advir de uma ideia, lamento dizê-lo, um tanto complexada e paranóica. É a criação de uma narrativa disruptora, que passa (tem passado) facilmente por anti-Portugal. Uma coisa é desmistificar. Outra é não contextualizar.

Parecendo que não, esta questão é um instrumento que tem, também, muitas cordas por onde tocar. Argumentam, alguns, que a época não deve ser tomada como uma desculpa. Que, se o fosse, não poderíamos estudar criticamente nenhuma ideia, nenhum movimento, nenhuma personagem pretéritos, presos de um relativismo histórico, incapaz
de juízo e critério morais sobre o passado. Exemplificam com os odiosos casos da Santa Inquisição ou de Hitler, e da impossibilidade relativista de sobre os seus actos nos pronunciarmos eticamente. São, é evidente, objecções baseadas em analogias superficiais e perigosas.

O relativismo não critica, porque considera todos os valores igualmente respeitáveis em função de condições específicas, de lugar e de época. Não sou um relativista. Mas, no outro extremo, o procedimento consistiria em focar, apenas, os pontos que convêm para, a partir deles, se constituir uma narrativa moral, crítica, do século XXI, sobre as figuras da História. A esta luz, não há homens de época, pensando, mesmo quando para além do seu tempo, segundo a lógica do seu tempo.

Podemos pedir contas a Aristóteles (sem o qual não existiria, porventura, o ímpeto inicial para a maioria das pesquisas científicas tal como as delimitamos hoje), por haver feito a apologia da escravatura. E proscrevê-lo. Ou a John Locke, pela mesma defesa do esclavagismo. Sendo que o que faz sentido, penso eu, é compreendê-lo como um dos maiores pensadores da tolerância, da liberdade, e um dos pilares da política como teoria e acção reflectida. Sem deixar de lamentar a sua cegueira, que é a de todo um tempo.

No meio desta discussão, usam-se grandes etiquetas para colar aos oponentes, e aponta-se o dedo a qualquer narrativa diferente da própria. O  desacordo, este desacordo, é sempre catalogado como afim do discurso dos Senhores, dos colonialistas, dos brancos. Não há meio-termo nem subtilezas. A ideia-chave é, por parte dos detractores de Vieira, a de que aqueles que o não criticam estão a ser cúmplices de um passado ignominioso, pelo qual Portugal deveria pedir desculpas. E sacode-se tristemente a cabeça: afinal, concluem alguns, esta cumplicidade seria transversal a muitos portugueses, de esquerda ou direita, que não foram capazes da fazer a sua desintoxicação mental.

E tudo isto é um pouco pequenino, complexado e ressentido. Tudo isto traduz, no plano simbólico, apenas uma luta pela inversão de poderes. A exigência de um pedido de desculpas por parte de Portugal significaria isto: Não é verdade que queiramos a igualdade. Os nossos antepassados foram vítimas dos vossos antepassados. Seremos sempre descendentes das vítimas, e o lugar que vos compete terá de ser, para sempre, o da culpa e o do ressarcimento. Nenhum dos vossos antepassados tem qualquer direito ao louvor e à admiração. Elogiá-lo é pactuar com o crime.

domingo, 8 de outubro de 2017

"ESCRAVAGISMO SELETIVO"



Evidentemente, onde vigore a liberdade de expressão, poderemos pensar de forma estranha, e apresentar as nossas ideias;  alinhavar os argumentos; partilhá-los, criar movimentos de massas em torno dos princípios que desejaríamos que fossem seguidos. Em última análise, o "estranho" é apenas o inabitual, o ainda não testado, mas quem sabe se a verdade do futuro.

Em dado ponto dos movimentos no palco do meu país, contudo, pergunto-me o que leva pessoas, ou grupos de pessoas, a defender ideias não apenas estranhas, mas tão incredivelmente aberrantes que nada senão a ignorância justifica, e a proclamá-las em voz alta, e a manifestar-se em nome delas.

Uma concentração contra a estátua do Padre António Vieira vem de que obscuras forças de esquerda? Com que fito? Por que razão, sinceramente? Rever a História portuguesa? Desmistificá-la? Expurgá-la de falsos heróis? Criar atrito? Fazer de uma estátua a uma figura cuja obra é ainda estudada - e justamente -, uma "causa fracturante"?

Quem leu Padre António Vieira sabe, pelo menos, duas coisas: que a sua escrita é, por si só, uma lição brilhante de retórica e do esplendor da língua portuguesa; e que a sua argumentação segue sempre a linha evangélica da igualdade de todos os homens, fossem brancos, pretos ou índios. Mas, repito, era preciso tê-lo lido.
Sendo uma figura de uma época, de uma ordem religiosa, e de um Império, cuja grandiosidade, claro, enalteceu, Vieira foi, nessa época, entre os jesuítas, e nesse império, uma voz moderna, progressiva, ensinando e pregando precisamente o valor de todos os homens e da emancipação.

Querer reduzi-lo a um "escravagista seletivo" (SIC), ao ponta-de-lança de uma igreja, que se quer atacar, ou de um imperialismo que liquidou sistematicamente os povos indígenas, é, no mínimo, não ter lido ou não ter compreendido - nem Vieira, nem os seus opositores, à época; é ter da História uma visão tacanha, ao nível, já agora, do Acordo Ortográfico no qual os manifestantes redigem os seus manifestos e anúncios.

Dir-me-ão: Mau! Que tem o Acordo Ortográfico que ver com o resto?
Respondo: incluem-se ambos, o Acordo e a manifestação anti-Vieira, objectivamente, numa mesma tendência para a simplificação e para o empobrecimento, numa mesma cegueira que arrasa o que não compreende, num movimento veloz para a supressão de singularidades mais complexas, mais ricas, mais "difíceis", seja na História, seja na Língua, a caminho de um Reino dos Simples. Portanto, que Vieira tenha sido um grande, grande, grande cultor da Língua Portuguesa é, de tudo, o que menos lhes interessa. O que nada lhes diz.

Esta manifestação não é de esquerda nem é de direita. A imbecilidade só casualmente ocupa um território político. É sempre, no fundo, o espírito ressentido da mediocridade a rever o que sempre o transcendeu. É apenas o esforço do nivelamento por baixo.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

LER, TER LIDO, RELER


Para um leitor obsessivo, como eu próprio, poucos prazeres se equiparam ao de estar em plena navegação por um livro sobre que tínhamos estimulantes expectativas. Desde as primeiras linhas, quando Autor e livro se encontram ainda em estado de Graça, sentimos que penetrámos, não apenas no mundo ficcional em que habitam aquelas personagens, mas no âmago do nosso interesse, como se, ler, fosse o rosto e fosse o corpo desse interesse; como se a história que nos vamos contando a nós mesmos, página após página, fosse a realização de um desejo, mas uma realização que o não suprime, o não extingue, antes o mantém ao mesmo tempo que o sacia, na encantadora vibração contínua do acto de ler.

Por vezes, ao longo da leitura, desaceleramos: uma passagem entediante, um capítulo que não está à altura, ou que não consegue captar-nos. Ou pensamentos parasitas, que nos distraem. Pode acontecer desiludirmo-nos. Como se, afinal, o livro não fosse o que esperávamos, e, então, o desejo extingue-se, efectivamente.

Daí que "termos lido" um livro nos traga um outro tipo de prazer. A visão do todo. O romance apreendido na sua unidade. E, realmente, só depois de termos lido um romance até ao fim, poderemos ajuizar do seu valor. Com A Ciociara sucedeu assim: uma leitura que partiu numa volúpia. Capítulos que devorei numa alegria de leitor. E, a partir de certo ponto, a perda do prazer, uma habituação sem mais surpresas. Num comentário que principiei a escrever nesse momento, queixava-me de um declinar de intensidade. Preparava-me para catalogar o romance como uma decepção.

Porém, nos últimos 3, 4 capítulos, a obra reanima-se. E um incidente trágico contagia e toma conta das protagonistas, da história, do leitor. Chegamos ao fim esgotados da tensão psicológica, inconsoláveis por tudo quanto experimentámos por interposta pessoa. Na visão da obra como um todo, já não pesam os momentos de menos interesse: reavaliamo-los inconscientemente; foram necessários como vias pacientes para a preparação de um certo desfecho. A Ciociara é um grande livro de que, a meio, quase desisti. E que, como obra, classificaria, depois de lida na íntegra, como sublime. Dura e sublime.

Um terceiro tipo de prazer é o da releitura. O que se perde em inocência e descoberta, o que lhe falta em surpresa, é compensado pelo olhar advertido, sábio. É uma leitura que nos oferece o gosto do reconhecimento e da familiaridade. "Sim, cá estás tu." Nos melhores casos, oferece também a possibilidade da descoberta de pormenores e até de uma compreensão que discorda da anterior.

Tenho alguma dificuldade em reler. Mas todas as releituras que fiz introduziam um elemento inesperado, uma chave que me escapara, um ponto de vista acrescentado e aprofundador.

São três prazeres que não se dispensam mutuamente. Ler. Ter lido. Reler.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

ISALTINO


A democracia tem destas coisas. Os resultados parecem-nos sempre errados quando não seguem as nossas razões. Dir-se-ia impossível que uma maioria pudesse esolher mal, como se o saber da maioria devesse conter um elemento místico, uma indiscutível verdade.

Irritámo-nos quando uma maioria escolheu o Brexit; quando outra (ou os suficientes) elegeu Trump; ou perante a horrenda preferência do pavoroso Isaltino, com maioria absoluta, para a Câmara de Oeiras.

A pergunta, em face destes clamorosos erros de casting, terá necessariamente de ser: porque respeitamos, afinal, a democracia? Se a decisão do eleitorado não está intrinsecamente isenta de toda a insensatez e de todo o perigo, se não é um gesto mágico, superior, grávido de uma verdade absoluta, se lhe discutimos o valor, ainda que reconhecendo-lhe a validade, o que justifica essa aceitação? E porque a defendemos como o mais forte sinal da civilização e do progresso político?

Ou descarregamos, qual fardo tornado absurdo, esta veneração pela democracia como o sistema mais justo, ou sequer, nas palavras de Churchill, o pior com excepção de todos os outros, ou deixamos, no rescaldo de uma eleição, de criticar a expressão da "vontade popular" identificando-a como um sintoma "grave de cidadania" (Júdice devia querer dizer: um sinal grave de falta de cidadania), ou do terceiro-mundismo dos portugueses.

O subdesenvolvimento? Claro. Mas essas pessoas existem, não se lembravam? Há, é claro, votos menos, digamos assim, instruídos. De rurais, de idosos amedrontados, de pessoas preconceituosas, de gente que não desmonta a manipulação. Que maçada! E agora? Os seus votos não deveriam valer? Deveriam valer em menor percentagem? Quando coincidem em grande número e guindam ao poder o ladrão e o corrupto, anulamos a eleição?

Ou será que, em última análise, todos os votos significam algo? Ou seja, que não há votos estúpidos, mas votos que pedem alguma coisa, logo dizem alguma coisa, que nos passa despercebida, ou não é do nosso interesse particular? E portanto, o que se impõe é, mais do que uma crítica ou o desânimo, uma hermenêutica?

 A maioria absoluta oferecida a Isaltino é aterradora. Eu sei. Eu sei. Mas que significa ela, poças!, mais do que o baixo nível, o terceiro-mundismo, a ignorância ou a falta de educação cívica dos eleitores? Que viram os desfavorecidos (dando de barato que foram, sobretudo, estes, os culpados, como o haviam sido em Inglaterra e nos EUA)? Que lhes soou no candidato? O que perceberam, eles, que um homem venal, corrupto e inculto, soprando o sempiterno charuto, teria para lhes oferecer?

Duas coisas parecem certas: Isaltino era promessa de qualquer coisa com mais peso, para esses eleitores, do que as questões de moral e de carácter. E qualquer coisa que os outros não tinham para oferecer - ou não da mesma maneira.