terça-feira, 26 de dezembro de 2017

PODEMOS AMAR A OBRA DE UM CIDADÃO INFAME?


O que neste tema custa mais é a ideia de que, se considerarmos extraordinários - e comprarmos! - o livro, o filme ou a música de um artista pessoalmente infame, um cidadão eticamente indigno e repulsivo, parece que, de algum modo, o estaremos a recompensar. Quando sabemos o que fizeram vários, desde os que colaboraram com o nazismo e o estalinismo ou escreveram manifestos anti-semitas, para recuarmos consideravelmente no tempo, até aos que violaram mulheres, ou jovens, ou crianças, para nos situarmos no presente (o tempo do "#metoo"), a sua obra inteira parece-nos irremediavelmente contaminada e condenada. Podemos exibir, na nossa estante, na nossa sala, um seu romance que apreciamos, um seu filme que nos marcou, uma sua música que nos exalta? Podemos consumi-los? Pior que tudo: podemos amá-los? Não significará, isso, pactuarmos com os crimes da pessoa que os realizou? Repito, pois: é possível amarmos a sua obra?

O problema é que sim. A obra não é o autor, e liquidá-la porque quem a criou foi um homem reprovável, não é puni-lo, ou punir a sua memória: é punirmo-nos. É privarmo-nos a nós próprios de uma construção que vale por si, e cuja qualidade a torna digna de nós, e de que dela usufruamos.

A censura, que é sempre um acto que nos rebaixa e avilta, uma vez que consiste em sonegar, aos olhos e aos ouvidos das pessoas, o que as pessoas merecem conhecer, não é aceitável em face da Arte. Mesmo abstraindo do autor - mesmo que o "conteúdo" da obra nos incomode. Com que direito a julgaríamos? A justificação de que  não nos apraz estética ou eticamente seria, é claro, intolerável. A Arte Maior deve atormentar-nos, mais do que pacificar-nos. Tem de nos desafiar, pondo-nos sempre à beira do abismo. A de que a vida do Autor se desvia das nossas regras, mesmo as mais profundas e indiscutíveis, também não. É com o ser humano total, nas suas escolhas, as justas e as terríficas, que nos confrontamos, em qualquer obra autêntica, que, de algum modo, representa o melhor que a humanidade criou - ainda que esse melhor (intelectual, estética, emocionalmente) seja, no concreto, e moralmente, um produto do pior e do mais execrável indivíduo da espécie.

Agora que, aos que já sabíamos que foram pessoas indignas, os racistas, os predadores, os imorais, se juntam novas revelações, e os nossos ídolos continuam diariamente a cair, temos uma reacção de horrorizada incredulidade. Desejamos que sejam punidos pelos seus actos. Não esperamos, não queremos, não admitimos que sejam perdoados em nome da sua Arte - isso seria uma perversão social.

Mas não aceito que, inversamente, a sua obra seja punida, ou escondida, ou censurada, ou apagada, ou ostracizada em vez deles, ou em nome das suas vítimas. Na obra se encontra o seu valor e o seu mérito. A sua grandeza e a sua energia. Na própria obra reside a sua razão de ser.




quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

JOVEM CONSERVADOR DE DIREITA


A ironia é um dom ao alcance de raros. É uma faculdade aristocrática, no melhor sentido da palavra. Quando tentamos exercitá-la em meios muito povoados, onde reina a mediania e se nivela por baixo, como em países selvaticamente capitalistas ou nas redes sociais, é sempre incompreendida e liquidada.

Um dos maiores problemas dos regimes democráticos é, aliás, este mesmo. Como, por si só, o critério "da maioria" não dá conta das virtudes nem das estupidezes de uma maioria específica numa específica situação, ocorre que uma maioria de grunhos possa eleger um grunho-mor para presidente, ou que uma maioria de imponderados possa decidir com base em receios e preconceitos. Acontece que, no Facebook, nada mais fácil do que reunirem-se maiorias de grunhos: tipos intelectual, emocional e culturalmente elementares, incapazes de se pôr no lugar do outro, imunes ao sentido de humor e à ironia, ensopados numa qualquer obsessão promovida a Causa, alheios a razões ou argumentos. Como se sabe, o Facebook é, bastas vezes, refém das denúncias destes grupos de odiadores profissionais. Faz advertências, fecha contas, remove fotografias publicadas. Muitos grunhos não percebem que certo nu é arte, queixam-se, e o nu desaparece. Muitos grunhos sentem-se ofendidos com um post que não entenderam, queixam-se, e o autor é avisado, ou suspenso, ou censurado.

E assim, desaparece, nesta voragem censória, um dos mais inteligentes sítios, que é o Jovem Conservador de Direita. Com um misto absolutamente brilhante de sofisticação intelectual e cultural, de uma sagacidade irónica e com um ferrão crítico certeiros, este jovem, que não seria um único jovem, mas, suponho eu, um grupo, nem seria conservador, e não certamente de direita, funcionou como um Conde d'Abranhos do nosso tempo. Escalpelizava, sob a personagem de um carreirista, os tiques, as ambições, os lugares-comuns dos típicos e sôfregos elementos das juventudes partidárias.

Os comentários dos leitores eram, muitas vezes, atrozes de burrice. Curiosamente, da parte, sobretudo, de grunhos de esquerda, que liam as crónicas estrita e literalmente, sem noção de que a crítica era dirigida precisamente contra uma certa visão da direita. Que as ideias defendidas pelo autor, como "jovem conservador", se auto-destruíam, irónica e deliberadamente, pelo ridículo.

A quem não conhece as impagáveis crónicas, um apelo. Procurem-nas (estão em jornal, estão em livro), repliquem-nas, divirtam-se. O que é muito bom não morre. E em algum outro meio, o jovem conservador há-de ressurgir, com o mesmo ou com outro projecto. Espero-o(s).


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

OS NOVOS VAMPIROS


Uma coisa em que, obviamente, as companhias que proporcionam tv+internet+telemóvel, ou seja, as Nos, as Meo ou as Vodafone deste mundo, não pensam, é que os seus pacientes têm emoções. Quer dizer, que se irritam, ofendem, indignam. A começar logo pela "fidelização", que a curto prazo
 parece um ganho comercial, mas, realmente, enerva o consumidor que se sente mal no casamento. Continuando no tratamento pós-venda dos clientes, que é uma vergonha. (Agendamentos e remarcações sucessivamente incumpridos, sem aviso prévio, por exemplo). Concluindo com cobranças enganosas, propostas em letra miúda com rabo de fora, etc.

Como são grandes empresas, o lado humano escapa-lhes. Basta pensar no jeito que lhes dá que as suas páginas na internet não aceitem reclamações, para se perceber o calibre de Xico-espertismo que os move. Nos EUA, certos incumprimentos ou desleixos seriam ressarcidos. Como estamos em Portugal, onde os tribunais são os mesmos que deixam o Dr. Carrilho ir em paz, ninguém se lembraria de pedir indemnização. E, portanto, as companhias tornaram-se piratas de olho de vidro, perna de pau e cara de mau. Prestam mau serviço e estão sempre prontos para enganar o cliente.

Havendo queixas de consumidores, aliás, embatem sempre em advogados carenciados de qualquer sombra de escrúpulo, desses que enviam cartas ameaçadoras a senhoras idosas por diferenças de cêntimos, e respondem aos mails na prosa feroz de tubarões insensíveis. Não vale a pena chamar a Deco contra o bullying de tais companhias.

Quando mudei de casa e se descobriu que a empresa não tinha condições para instalar o "produto" no meu novo lar - sem que eu tivesse nisso a menor culpa -, fizeram-me pagar a cóima correspondente à minha traição. Lembro-me de ter argumentado: "Mas eu quero manter o contrato. Os senhores é que não estão tecnicamente aptos para a alteração." E de me terem retorquido, sem rir: "O contrato não foi feito consigo, mas com a casa onde morava."

Infelizmente, quem teve de pagar não foi a casa onde eu morava!

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

FREQUENTÍSSIMAS


Como a Igreja Católica se deu ao luxo de preencher a História com malfeitorias, que não foram propriamente pormenores, desde as Cruzadas, à perseguição, tortura e assassínio de hereges, inventou-se, em tempo de reconciliação e auto-crítica, um argumento que viria para ficar. A Igreja é composta por homens, e os homens, inevitavelmente erram. Se alguém o sabe bem (ainda que não fosse omnipotente) é o Próprio Deus. Os erros são humanos, mesmo quando praticados em nome Do que nunca erra.

O argumento foi reciclado, séculos depois, para se lhe ajustar o comunismo: o mesmo fio retórico. Uma ideia justa, e boa por princípio, pode, porém, desafinar no momento em que a realizamos, por culpa dos homens que a traduziram do mundo ideal para o mundo sensível. Marx, visto pela lupa desse argumento, teria pensado bem, mas a passagem à prática foi obra de ambiciosos, ou psicopatas, como Staline. Discute-se ainda, em certas esferas ideológicas, se Lenine estaria, neste processo, do lado dos bons e justos, ou, precisamente, dos que principiaram a estragar uma ideia que, na teoria, era tão feliz.

Relembro o argumento, a propósito do caso Raríssimas. E, por extensão, da evidência de que todas as organizações solidárias, ou umas quantas!, vocacionadas para apoiar carenciados, ou doentes, ou sejam quem forem as pessoas vulneráveis na sociedade, têm sido descobertas num emaranhado pouco edificante de trafulhices. Dinheiros do Estado que não chegam aos destinatários, colectas ou receitas de espectáculos, que acabam engordando presidentes, comprando-lhes roupa ou pagando-lhes automóveis e viagens. É atroz. E novo, de certa forma. Porque a desvios nos Bancos, aproveitamentos nas Câmaras ou intransparência nas relações entre a política e as finanças, já nos habituáramos. Seria muito mau, mas a nossa pouca fé nos homens portugueses levava-nos a crer na corrupção como um destino. Porém, quando se falava de suporte às vítimas, confiávamos. Estendíamos a moeda ao peditório, comprávamos o calendário para ajudar no combate ao cancro, estávamos presentes em festivais solidários, aceitávamos, à entrada dos supermercados, o saco que aviávamos com massas, arroz e lacticínios para ajudar na consoada das famílias "desfavorecidas".
O problema é que a premissa da confiança se avariou. O estado de graça desfez-se.

Bem oiço, agora, a maioria das pessoas a reagir mal à pouca-vergonha. "IPSS? Nunca mais!"  "Solidariedade? É uma corja!" "Organizações com uma Causa social? Angariações? Era o que faltava."

E é lamentável, sem dúvida, que a intenção de doar, de oferecer do que se tem, de querer saber dos outros, de proteger os aflitos, vá esmorecendo. É uma pena que a menção do espírito de generosidade faça imediatamente franzir cenhos. Que se julgue que há-de haver um secretário, ou um presidente, ou um director, a encher os bolsos e a mesa da sua família. Que querem? A corrupção é humana, sim. Os erros dos homens são um rude golpe nos projectos meritórios. Mas generalizar a suspeita, de forma a nunca mais cair no conto do vigário, também é humano. Que o mesmo é dizer: uma imperfeitíssima reacção.