quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

FREQUENTÍSSIMAS


Como a Igreja Católica se deu ao luxo de preencher a História com malfeitorias, que não foram propriamente pormenores, desde as Cruzadas, à perseguição, tortura e assassínio de hereges, inventou-se, em tempo de reconciliação e auto-crítica, um argumento que viria para ficar. A Igreja é composta por homens, e os homens, inevitavelmente erram. Se alguém o sabe bem (ainda que não fosse omnipotente) é o Próprio Deus. Os erros são humanos, mesmo quando praticados em nome Do que nunca erra.

O argumento foi reciclado, séculos depois, para se lhe ajustar o comunismo: o mesmo fio retórico. Uma ideia justa, e boa por princípio, pode, porém, desafinar no momento em que a realizamos, por culpa dos homens que a traduziram do mundo ideal para o mundo sensível. Marx, visto pela lupa desse argumento, teria pensado bem, mas a passagem à prática foi obra de ambiciosos, ou psicopatas, como Staline. Discute-se ainda, em certas esferas ideológicas, se Lenine estaria, neste processo, do lado dos bons e justos, ou, precisamente, dos que principiaram a estragar uma ideia que, na teoria, era tão feliz.

Relembro o argumento, a propósito do caso Raríssimas. E, por extensão, da evidência de que todas as organizações solidárias, ou umas quantas!, vocacionadas para apoiar carenciados, ou doentes, ou sejam quem forem as pessoas vulneráveis na sociedade, têm sido descobertas num emaranhado pouco edificante de trafulhices. Dinheiros do Estado que não chegam aos destinatários, colectas ou receitas de espectáculos, que acabam engordando presidentes, comprando-lhes roupa ou pagando-lhes automóveis e viagens. É atroz. E novo, de certa forma. Porque a desvios nos Bancos, aproveitamentos nas Câmaras ou intransparência nas relações entre a política e as finanças, já nos habituáramos. Seria muito mau, mas a nossa pouca fé nos homens portugueses levava-nos a crer na corrupção como um destino. Porém, quando se falava de suporte às vítimas, confiávamos. Estendíamos a moeda ao peditório, comprávamos o calendário para ajudar no combate ao cancro, estávamos presentes em festivais solidários, aceitávamos, à entrada dos supermercados, o saco que aviávamos com massas, arroz e lacticínios para ajudar na consoada das famílias "desfavorecidas".
O problema é que a premissa da confiança se avariou. O estado de graça desfez-se.

Bem oiço, agora, a maioria das pessoas a reagir mal à pouca-vergonha. "IPSS? Nunca mais!"  "Solidariedade? É uma corja!" "Organizações com uma Causa social? Angariações? Era o que faltava."

E é lamentável, sem dúvida, que a intenção de doar, de oferecer do que se tem, de querer saber dos outros, de proteger os aflitos, vá esmorecendo. É uma pena que a menção do espírito de generosidade faça imediatamente franzir cenhos. Que se julgue que há-de haver um secretário, ou um presidente, ou um director, a encher os bolsos e a mesa da sua família. Que querem? A corrupção é humana, sim. Os erros dos homens são um rude golpe nos projectos meritórios. Mas generalizar a suspeita, de forma a nunca mais cair no conto do vigário, também é humano. Que o mesmo é dizer: uma imperfeitíssima reacção.

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