quinta-feira, 31 de agosto de 2017

PARIS



Tenho o álbum diante de mim. Na ilustração da capa, um balão expõe a fala de uma certa personagem: «Paris será sempre Paris!», diz a senhora. Em seu redor, vemos uma profusão de gente das mais variadas etnias e culturas: argelinos, negros, provavelmente da Costa do Marfim ou da Somália, asiáticos. Numa primeira leitura, a ironia reflecte a cegueira da mulher, a qual se refere a uma Paris de cuja mudança não se apercebeu. Numa segunda leitura, mais filosófica, não há propriamente ironia: existiria, sim, uma essência parisiense que se mantém, independentemente das transformações da sua população, ou da multiplicidade de linguagens e costumes.

Sou um fanático de Paris. Mesmo de uma vez em que deparei com a cidade negligenciada, como um apartamento que não é limpo nem arrumado há demasiado tempo, com rachas visíveis e uma atmosfera geral de abandono, precisei de poucas horas para reencontrar a respiração íntima da sua personalidade.
Já visitei Paris nas mais diversas situações, das mais diferentes maneiras e sob pretextos inenarráveis. Até com o de me ir documentar para a dissertação que escrevia na altura. Com um companheiro tresloucado de aventuras; com uma companheira perigosa de aventuras; em Lua-de-Mel; com meu irmão; com a mulher de então e meu filho; sozinho. Uma das tristezas que conservo é nunca ter conseguido convencer certa namorada a viajar, comigo, até à Cidade com maiúscula (para evitar o lugar-comum «Cidade-Luz»). Que a encara, infelizmente, como um cliché turístico: a Torre Eiffel, o Moulin Rouge, Montparnasse, ou seja, uma cidade que mais valeria comprar dividida por postais ilustrados. Seria motivo bem fundamentado para uma separação se, de facto, essa mulher não fosse infinitamente mais do que o seu preconceito anti-Paris.

Nem quando visitei Paris sozinho me senti só. Chegava sempre carregado de memórias que me devolviam imediatamente ao específico universo parisiense. O dia em que me furtaram a mochila com todos os meus pertences. O episódio da cama por fazer, no hotel. Comer uma maçaroca assada num fogareiro. Deliciar-me escutando o músico de rua, que arrancava melodia a um serrote, fazendo-o vibrar com um arco. Os passeios pelo Jardin du Luxembourg. A descoberta da FNAC, quando em Portugal se não sabia o que era isso. Ou (acreditem!) a descoberta do MacDonald quando em Portugal se não sabia o que isso era. Mas, mais do que tudo, perder-me pelos alfarrabistas do Quartier Latin, vasculhar impensáveis raridades, admirar os pintores e conversar com eles, em Montparnasse. Inebriar-me. Sentir-me a mim mesmo. Reencontrar-me no que em mim me dá mais prazer.

De cada vez que me preparo para regressar a Paris, prezo tanto o planeamento e a antecipação como a visita em si. Entrar num modo específico, decidir o que levar, reler livros em francês. Conheço grandes cidades do mundo - e, paradoxalmente, nunca fui a umas quantas, que não gostaria de morrer sem espreitar. No entanto, surgindo-me a oportunidade, não é nessas cidades que penso imediatamente. E se aproveitasse agora para..? Não senhor. É em Paris. Discuto comigo próprio. Outra vez? Que tal, agora, estoutra? Que tal, agora, aqueloutra? Não há só Paris no mundo, caramba, José António.
É inútil. Há-de ser Paris, uma vez mais. Tic-tac, tic-tac, o plano entrou em marcha.

      

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O TRABALHO


Todos nós, seres humanos vivendo em sociedade, obrigados a trabalhar para o próprio sustento, aprendemos a sentir o esforço do nosso trabalho como penoso e desgastante, uma forma, que aceitamos (que remédio!), de opressão, um peso que mina e condiciona o sentido da nossa existência e o valor da nossa vida.

É verdade que, não há muitos séculos, o ingresso das mulheres no mundo laboral foi saudado pelo pensamento feminista como um passo para a emancipação. Igualmente, a entrada de um jovem no seu 1° emprego é vista como a garantia da sua independência. Finalmente, sabemos que a pessoa que se reforma está ansiosa por se dedicar a actividades em que se realize — ou seja, em redescobrir o trabalho de um modo que o faça sentir-se vivo e feliz.

Parece um pouco retrógrado sacar, hoje, qualquer referência a Marx. Pensadores do século XXI, imbuídos do espírito científico e de um festival de experiências, não se dignam já falar do velho barbudo, sequer para o denegrir. As contas foram saldadas. A História se encarregou de mostrar em que resulta a aplicação da teoria marxista à prática. Assunto arrumado.

E todavia, as palavras de Marx acerca do trabalho (que já, antes dele, eram as de Hegel) são de uma sagacidade filosófica que o tempo não arruinou. O trabalho preenche-nos. O poder de realização de coisas é o princípio da nossa própria realização, como sujeitos e seres humanos. Sermos capazes de ensinar, de consertar, de pintar ou dançar, ou representar ou cozinhar, de coser ou dirigir, ajardinar, experimentar, narrar, limpar ou tocar um instrumento, constitui, em todas as formas, aquilo sem que a vida seria mais pobre e mais triste.

É, portanto, quando não nos realizamos no trabalho porque este nos nega, deixando-nos com o travo da infelicidade mais do que do bem-estar, quando "não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas se torna fisicamente exaustivo e mentalmente desgastante", não escolhido nem desejado, antes imposto, que ele se vira contra nós, ao invés de nos libertar.

A isto, Hegel, primeiro, Marx e Engels, no século XIX, chamaram alienação. A cisão, de cada um, de si mesmo. Não sermos nem nos reconhecermos no que fazemos. Roubarem-nos de nós a nós mesmos, empurrando-nos para uma rotina absurda.

Ao contrário do que poderíamos pensar, nem sempre a compreensão do que sucede está nas últimas descobertas. Às vezes, basta relermos os pensadores de ontem.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

MAD MEN À PORTUGUESA


Confesso que uma das séries a que me converti recentemente foi Mad Men. Trabalhando em empresas da Madison Avenue, os jovens publicitários dos anos 50 cunharam, para si mesmos, o nome que a série usaria como título.

Aquilo que podemos acompanhar é, entre reflexões existencialistas e relacionamentos dramáticos, o puríssimo movimento da criatividade. No fundo, a publicidade vista como uma forma de arte. Os críticos da sociedade consumista não proliferavam ainda. Tornar os produtos apetecíveis, criar o desejo de os possuir, vendê-los psicologicamente, ainda não parecia uma infâmia, uma futilidade e uma arma ao serviço de um capitalismo sem escrúpulos, impiedoso. Apenas o exercício de jovens talentosos, poetas não do belo, mas do gosto e do apetite: estes homens estudavam o produto e o nicho de potenciais consumidores, e criavam o conceito que fazia crescer água na boca, a frase certeira, a imagem irresistível. Vemo-los pensando, sofrendo, em crise, ou tendo a intuição genial, que deverão, antes de mais, vender aos proprietários da marca, que a eles recorreram. Sem PowerPoint ou imagens digitais, dependendo unicamente da sua retórica e dos seus desenhos, numa sala de reuniões, apresentam a ideia ao cliente, como quem faz magia.

Quem vê um episódio de Mad Men e, depois, começa a prestar atenção à publicidade lusa, sente-se chocado. Oh, bem sei que, dos anos 50/60 ao nosso tempo, muita coisa ocorreu. Oh, bem sei que os EUA são os EUA e a Lusitânia é a Lusitânia. Ainda assim. Quem são, onde se formaram, quem contratou estes gajos? Já ouviram um anúncio radiofónico a um Banco, por exemplo, que não se faz senão através de sistemáticos diálogos entre um homem e uma mulher, sob o signo de jogos de palavras e de equívocos arrepiantemente paupérrimos? Pelo amor de Deus. Os fulanos que os contrataram acharam graça, riram-se? Alguém gritou: Que ideia tão gira? Ou um anúncio a um stand, ou a uma marca de automóveis? Ou, no cinema, aos benefícios da reciclagem? Ou a um refrigerante? Já alguém viu o mundo pretensamente (e pretensiosamente) surrealista da Somersby? (Dir-me-ão que talvez não seja publicidade portuguesa. Pois aposto que o é).

Temos jovens de talento em quase todas as áreas. Hoje. Na Literatura, na Banda Desenhada, no Humor, na Música, no Cinema, no Desporto, até na Imprensa. Por acaso, o produto televisivo nacional é pobrezito — mas, para quem aprecia o género "telenovela", o facto é que tem sido premiado internacionalmente.

Portugal começa a mostrar-se e a espantar. Considero este Renascimento uma das coisas melhores da participação no nosso tempo e neste país. Mas, por favor, não o publicitem.

Esqueçam a ideia. Não com os publicitários portugueses que nos cercam, gente que, no meio do renascimento do país, nunca renasceu, e é, até, infinitamente menos interessante do que os seus bisavós. Mesmo a publicidade portuguesa do passado vale mais: "Uma chama viva onde quer que viva", "Es-es-tá a go-go-zar co-co-mi-migo?" "Não, estou a go-go-go-zar co-com ele", etc. Estes, em contrapartida, já nasceram mortos: se os chamássemos para falar dos bons tempos lusos, arriscávamo-nos a estragar o brilho de um país a ressuscitar.

HÁ PRÓ MENINO E PRÁ MENINA


Relativamente ao tema dos cadernos de actividades da Porto Editora, um azul, ao que parece mais complexo, para os rapazes, e um cor-de-rosa, dizia-se que mais básico, para as raparigas, passará a existir um A.-RAP e um D.-RAP: Antes de Ricardo Araújo Pereira e Depois de Ricardo Araújo Pereira. Com toda a justiça.

Por mim, arrependo-me amargamente de não ter seguido o meu instinto e publicado de imediato, contracorrente, a crónica que já tinha preparado. Reagia ao vórtice de comentários na internet, muitos deles redigidos por amigas minhas. Pedia-se a cabeça da Porto Editora. Acusavam-na de discriminação. Recordavam que não estávamos na Idade Média. Apelavam para o boicote aos seus livros.

Coros indignados sublinhavam o facto de haver, no nosso país, mais doutoradas do que doutorados. Subia-se de tom. Era uma vaga imparável. Na minha impublicada crónica, da qual repesco, de memória, umas quantas ideias, enunciava a evidência de que sempre se editaram livros destinados ao gosto das raparigas, e outros, ao dos rapazes. Como pai de um casal, assisti à lenta e segura constituição das referências do meu filho, o primogénito; inicialmente, nada o sugeria, até porque, durante muito tempo, ele se identificava com as personagens femininas dos filmes da Disney. Propunha que, por exemplo, em dada brincadeira, fizesse de conta que era o Mowgli, enquanto eu representava o Baloo, e recusava-se: preferia ser a namorada do Mowgli.
Tentei que treinasse futebol num clube, mas foi sempre um sacrifício. Confesso que se tratou de uma fase que me confundiu, mas a que me ajustei sem ruído.
Em contrapartida, a minha filha apreciava o futebol. Nunca se interessou por bonecas, nem carrinhos de bebé, muito menos por apetrechos para o lar.
E no entanto, sem programação (pelo menos consciente) da minha parte, os estereótipos acabaram por se definir na sua vida. Por causa dos amigos e das amigas, da publicidade, de séries de estímulos subliminares? Sem dúvida. Ou também pelo curso intrínseco do seu desenvolvimento? Aí está. A experiência mostrou-me como se formam, naturalmente e desde cedo, interesses e gostos diferenciados, que seria ridículo atribuir exclusivamente a estereótipos e à pressão do meio. Compreendo até que me digam: A origem é indiferente — intrínseca ou cultural, essa padronização redutora, na prática, dos papéis feminino e masculino, deve ser combatida. Mas combater não significa proibir uma realidade complexa.

Meu filho, quando começou a ler, pediu-me que lhe comprasse um Livro dos Rapazes (azul e tudo), o qual, como o manual do escoteiro-mirim, ensinava a montar uma tenda ou a comunicar em código. (Mais tarde, quando o descobriu, a miúda leu o livro, da primeira à última página, deliciada e sem quaisquer complexos. Actualmente, porém, quando a levo à Biblioteca, escolhe sempre livros para raparigas: os que lhe explicam tudo, como ela orgulhosamente diz, sobre a sua pré-adolescência. A preparam para o período, lhe falam das transformações do corpo ou mostram como se maquilhar).

Por péssima que fosse a ideia da editora, não vejo nela senão o desejo rudimentar de lucrar com o facto de os meninos serem fãs de carrinhos e futebolistas e, as meninas, de princesas e penteados. Preconceito teria sido eu não comprar a meu filho, se ele pedisse, o caderno para as raparigas. Em suma, pode ter sido um tiro no pé da Porto Editora. Não vale a pena passar-se à fase do linchamento.

Não desisti da crónica por falta de coragem. Apenas porque me preocupou a insistência dos media em que os exercícios para elas eram mais básicos do que os do caderno para meninos. Pensei: A ser assim, então, de facto, convém ir com cuidado. Ricardo Araújo Pereira, contudo, comprou-os, comparou-os. Nem sequer é sistemática e significativamente verdadeiro que haja uma diferença de grau de dificuldade: aleatoriamente, encontram-se exercícios mais simples ou menos simples num ou noutro.

Não fui a tempo. Agora é inútil: a genial intuição de RAP esvaziou o tema. Acabou a festa. Arrumem as bandeiras e os very-light. A multidão em fúria pode começar a dispersar.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

TRAZ PRÁ A FRENTE



A televisão portuguesa data dos anos 50 ou 60. Como é fácil de ver, a sua história acompanha, reflecte e, em alguma medida, marca o outrora do país. Se nos lembrarmos de que uma parte ocorreu sob o Estado Novo, em tempos de miséria e pouca diversidade cultural, anteriores à internet e aos telemóveis que constituem o único habitat das últimas gerações, apercebemo-nos da sua importância então, e intuímos a importância que poderá ter, ainda, como meio de nos levar a revisitar o seu e o nosso passado.

Hoje que Portugal parece renascer a partir de improváveis vitórias - o Euro 2016, a Eurovisão, as medalhas de ouro dos nossos atletas -, os jovens contemporâneos vivem sob uma educação e uma experiência de sucesso colectivo e, portanto, têm expectativas, fé e modelos que os tornam radicalmente diferentes dos jovens dos anos 60. Lembram-se? No marasmo de um país isolado no canto da Europa, como um puto mandado virar-se, de castigo, para a parede (salvo que, em vez da parede, tínhamos o mar, que é tão diferente) habituáramo-nos a pertencer a uma pátria perdedora. Parava-se para assistir à Eurovisão, mas já sabíamos que não tínhamos a menor hipótese. Depois, evidentemente, dizia-se mal dos outros países, que nos invejavam e desprezavam. No futebol havia o Eusébio, mas, internacionalmente, não íamos longe. Amália encantava, mas, de facto, parecia pouco como símbolo de um país inteiro.

O programa Traz prá Frente, do Canal Memória, reúne, em torno de uma mesa, diversas gerações de bons conversadores. O extraordinário Júlio Isidro, que experimentou, inventou, propôs, renovou e, sobretudo, descobriu, desassossegado e inesgotável, Nuno Markl e Fernando Alvim, radialistas que, de algum modo, equivalem, hoje, com seus múltiplos e exuberantes projectos, àquilo que Isidro terá sido em outra altura (também por lá andou Àlvaro Costa, mas esse constituiu, quanto a mim, um erro de casting), moderados por Inês Lopes Gonçalves, uma jovem adequadíssima para o papel, genuinamente curiosa, interessada, pertinente, e um convidado rotativo, transformam-se nos eufóricos porteiros de viagens pela memória que valem a pena. A alguns de nós, recordam o que havia - e havia, com menos meios, coisas verdadeiramente magníficas - e, aos mais novos, possibilitarão conhecimento e comparação.

Trata-se, paradoxalmente, de um programa jovem. O seu modo de encarar o passado e as suas referências televisivas nada tem de bafiento ou saudosista. É sempre bem humorado, frequentemente reflexivo. Não existiam Sic ou Tvi, já para não falar das Fox e das AXN. Não havia Guerra dos Tronos, mas havia Bonanza e O Santo. E, ainda antes do 25 de Abril, Zip-zip. É uma terna e prolífica ligação às raízes.        

domingo, 27 de agosto de 2017

TEORIA SALUTAR DA CONSPIRAÇÃO


O problema com o conhecimento do mundo a partir dos media é que nunca podemos analisar o próprio foco. Mostram-nos uma narrativa acerca dos factos, mas quem nos mostra uma narrativa acerca da narrativa? Quem identifica metodicamente o preconceito, a ideologia, o interesse que, ocultos sob a pretensa objectividade, condicionam a forma de ver (e contar) o acontecimento?

Detenhamo-nos um instante naquela revista que, se bem me lembro, usa como frase a promessa de lhe dar "uma visão". O slogan devia pôr-nos de sobreaviso. Em primeiro lugar, porque desejaríamos que alguém visse (isto é: pensasse) em vez de nós? Em segundo lugar, qual o preço dessa dádiva, num mundo em que, é claro, tudo tem um preço?

A Visão, que já não é o que era e, neste momento, não vale senão pela crónica humorística de Ricardo Araújo Pereira (uma vez que até o Lobo Antunes caiu e se fixou numa rotineira ruminação sobre os seus fantasmas) tem dedicado uma série de artigos à alimentação. Em concreto, trata-se de mostrar que as alternativas, quer sigamos um projecto de saúde e bem-estar, quer a recusa ética de consumir carne, têm trágicas consequências. Seria, evidentemente, excelente trabalho jornalístico. Denunciar as ilusões. Mostrar que os paradisíacos caminhos das novas utopias ocultam males desconhecidos, tráficos impensáveis, desequilíbrios ecológicos perigosíssimos. A questão é que tudo tem de ser analisado à potência. Que narrativa subjaz a esta narrativa? Que interesses movem o corajoso desmascaramento de interesses?

O leitor deve proceder a uma autêntica revolução copernicana. Não perder de vista que uma visão geocentrista verá e explicará sempre os movimentos dos astros diferentemente de uma visão heliocentrista. Nem perder de vista que, mais do que o jornalista investigar a partir do seu próprio parti-pris, existem indústrias ligadas à alimentação dita normal que tudo fariam - e fazem - para que olhemos para os produtos biológicos e sem carne como para verdadeiros pesadelos.

Nesta crónica, que parece talvez reflectir a mais primitiva teoria da conspiração, não há senão um convite. Não aceitem que vos ofereçam uma visão. Desconfiem. Investiguem. Comparem. Pensem à potência. Leiam as leituras de leituras de leituras. Se não fosse vegetariano, dir-vos-ia: não comprem gato por lebre.


sábado, 26 de agosto de 2017

REVISÃO DA MATÉRIA DADA


Aos 59 anos, uma pessoa interroga-se. A bela utopia de uma alma que subsista para além do corpo parece-me elevadamente improvável. Bem como a ideia de que ela pudesse renascer em algum outro corpo que não, precisamente, este. O meu corpo e a minha alma são, digamos assim, almas gémeas. O meu pensamento ou as minhas emoções nunca estariam à vontade em outra casa. Sentir-me-ia embaraçado por me revelar, sem esconderijo algum, a um corpo diferente.

Não que, na minha juventude, não tenha sofrido alguns sustos por causa de fantasmas. Uma ou duas noites, certo grupo, no qual me incluía, reuniu-se ao redor de um tabuleiro, como se fossemos jogar monopólio; mas, em vez disso, víamos um pires a mover-se e a comunicar connosco. Essas noites marcaram-me indiscutivelmente. O que é dizer pouco. Porém, inclino-me, hoje, para uma complicada explicação desse fenómeno, que não seria com certeza boa ideia sumariar aqui, mas da qual infiro justamente, a dissipação da estrutura de energia a que chamamos alma, na ausência do corpo que a sustentou.        

Como dizem os jovens, e me repete insistentemente o meu filho, temos uma vida. Há que não desperdiçá-la. Ora tendo, na melhor das hipóteses, percorrido 3/4 do tempo disponível no jogo, torna-se inevitável fazer uma revisão da matéria dada, devendo, aqui, o termo matéria ser tomado literalmente. Se bem que seja, também, uma revisão do espírito dado. Isto é: uma revisão, no seu todo físico e mental, do que me cabia como ponto de partida da existência; do que deixei que disso fizessem; e do que eu próprio, que sou, afinal, isso, com isso e disso fiz. Com isso e disso me fiz.

Duvido que o resultado de tudo passar em revista não seja confrangedor para a maioria das pessoas. O tempo que se perdeu. A parte que se aceitou que nos incorporasse, para que os demais nos aceitassem. As inúteis dependências criadas. O peso - o tremendo peso dos hábitos e do conformismo. O medo - o tremendo medo de explorar os becos (com saída, sem saída, que importa?) que escapam ao hábito e à norma. O adiamento - o tremendo adiamento das utopias e das libertações, das fugas e do prazer, das ideias fixas benéficas e dos projectos abençoados.

Aos 59 anos, percebo, por fim, que a solução terá de ser simplificar. Instaurar um simplex na esfera da minha vida. De algum modo, preciso, como se tende a repetir em vão no início de cada novo ano, de me perguntar se «o que há» é igual ao que «quero». Ou se, a manutenção do que «há», descobrindo-lhe vantagens e pequenas alegrias, não serve para, sobretudo, continuar ignorando, ou adiando, ou recusando o que realmente «quero».

Depois, libertar-me do lastro. Aprender a reconhecer e a distinguir o essencial e o acessório. Se o acessório não pertence ao sentido da minha existência, ao que pode dar-me propósito à vida, então, dispensá-lo. Reaprender a dizer não, como em criança: ao que me desgasta e frustra e já não reconheço como essencial; ao que me ocupa o tempo, a mente, às vezes obsessivamente, e já não reconheço como essencial. E reaprender a dizer sim. Ao que me parecia demasiado caro, ou demasiado trabalhoso, ou demasiado invulgar, ou demasiado insensato, ou demasiado incompreendido, ou demasiado malvisto, ou demasiado demasiado, mas, na obscura, secreta, palpitante parte disto que eu sou, nunca parou de chamar por mim. Porque, em segredo, sempre me foi o essencial.  

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

DA FELICIDADE



Uma amiga - e sim, sei que estas crónicas vêm recheadas de alusões a amigas, mas, que querem? elas existem realmente e interferem nos meus dias - ofereceu-me, sem razão nenhuma, ou então para compensar, tardiamente, o esquecimento de alguma ocasião, um livro chamado Du Bonheur.

Esta «Viagem Filosófica», como promete o subtítulo, da autoria de Frédéric Lenoir, tem-me permitido revisitar os pontos cardeais da arcaica demanda de todos os homens. A felicidade. Eu creio na felicidade. Pode ser-me mais fácil acreditar na infelicidade do que na felicidade, mas não duvido de que esta também exista. Em muitos momentos, soube que a atingia. A consciência de uma harmonia perfeita entre mim e o universo. Momentos, dizia eu. Ou então, a noção que se tem, quando se reflecte sobre isso, de que, apesar de azares e contrariedades, se está de bem consigo e com a vida.

Lembrei-me de que, há uns anos, quando me dedicava a um blogue que era uma autêntica babilónia, o saudoso Kaostico, realizei um desafio curioso. Tendo nascido no distante ano de 1957, perguntava-me se seria capaz de encontrar 57 razões para sentir que era um homem feliz.

Refaço-me, hoje, o desafio. As razões terão, no geral, mudado. Algumas parecerão bizarras, outras pueris. Algumas incompreensíveis, outras insinceras. São as minhas 57 razões, nos dias que correm.

1-  Saber que ela me espera. Que a despeito da lonjura e das dificuldades, não é apenas uma ilusão ou uma amiga imaginária. Que nos reencontramos sempre. E sempre nos reencontraremos.
2-  Estar com a minha filha em casa. Espreitá-la enquanto espalha o seu estojo de maquilhagem e, diante do espelho, num sotaque brasileiro, vai dando conselhos e ensinando truques.
3-  Ter aderido ao Netflix, que enche de suspense os tempos mais solitários: The House of Cards, The Good Wife, Mad Men e Orange is the New Black.
4-  GoT: esperar semanal e ansiosamente pelo episódio seguinte. Saboreá-lo com dramática intensidade.
5-  Sempre e em toda a parte, os livros. Sopesá-los, cheirá-los, antecipá-los, comprá-los ou encomendá-los. O instante em que os meus olhos se prendem à primeira linha.
6-  O meu filho. Os tempos arduamente conquistados em que sabemos estar bem. Em que percebo tudo aquilo quanto em nós comunica na íntegra.
7-  Os meus amigos. De todos os quadrantes. Frequentemente distantes e negligenciados, mas aguardando a magia da presença. A própria festa da presença.
8-  Minha mãe, de 94 anos: a inteligência e o sentido de humor. As tardes com ela. Até as suas preocupações relativamente a mim, para ela sempre pálido e magrinho de mais.
9-  As viagens que não faço, ou não tenho feito, ou nunca mais fiz - mas que subsistem no horizonte. Um dia.
10- Os retumbantes regressos de meu primo. As histórias improváveis, as mais do que prováveis gargalhadas.
11- A independência, tantas vezes injustamente confundida com solidão. Ou, tantas vezes, tendo a solidão por preço.
12- A Banda Desenhada na minha vida. Tintim e Corto Maltese.
13- Proust, ainda e sempre. Os livros em geral, como já disse, e Proust em particular. Ter-me cruzado com a escrita que me apaixonou, o que poderia não ter sucedido. A bênção de Em Busca do Tempo Perdido.
14- A filosofia. Uma página de Kant.
15- Ter nascido em Lourenço Marques e haver vivido em Moçambique até aos meus 18 anos. Saber que não é o pretérito da vida, mas uma esfera de sensações e memórias que fizeram uma parte do que hoje sou, e nunca se diluirão.
16- Os meus óculos escuros e o meu relógio. Úteis, bons, bonitos. Olho-os e sinto um quase incompreensível prazer estético.
17- Ter-me tornado vegetariano. Levar-me a sério como vegetariano.
18- Os meus projectos, quem sabe se irrealizáveis, mas empolgantes. Uma editora. Uma revista digital.
19- Os meus romances. Estar, neste momento, a escrever um outro.
20- Os meus blogues: este, de crónicas, e o Profissão: Leitor, com experiências de leitura.
21- Viver em Carcavelos, próximo do oceano, depois de ter vivido uma separação dolorosa em Trajouce.
22- O cinema. Uma ida ao cinema com amigos.
23- Ser um professor de filosofia, numa escola em que a direcção é constituída por pessoas que me ouvem e se riem comigo.
24- Este computador novo, azul, secreto, ponto de partida de tantas viagens.
25- A música, também ultimamente arredada, mas sempre a um dedo de distância.
26- Pedro Mexia. Ricardo Araújo Pereira. Nuno Markl.
27- Ser português, com as inúmeras alegrias e todas as imperfeições de se ser português.
28- O futebol, não demasiadas vezes: algumas vezes, somente. E no seu melhor, não no seu pior.
29- O ateísmo. A liberdade e o pavor que me dá.
30- Comprar os ingredientes que, no meu Wok, me permitiram descobrir o acto, maravilhoso, de cozinhar.
31- Peter Sellers.
32- Sintra.
33- Francamente, o sexo. Mais do que sentir prazer, procurar (e achar) o seu prazer, com a dificuldade de um adolescente esforçado, mas inábil.
34- O debate. Quando possível, o uso do poder de discordar, argumentando convicta e convincentemente. O gosto de desmontar e contrapor razões.
35- A minha casa: minúscula, mas com uma cozinha ampla, defronte de um bosque com árvores de fruto, e a sala onde me sento a escrever. Como já antes enunciei: a minha casa é onde quer que me sente a escrever.
36- O meu joelho esquerdo, que me doía desde, provavelmente, os 30 anos, e cada vez mais, mas, depois de uma operação que adiara indefinidamente, retomou a sua actividade, simples, esquecível, perfeita.
37- E, por falar em joelho: o corpo. Não que seja o de um Adónis, mas porque emagreceu, responde eficientemente a todos os testes, a todos os exames, a todas as necessidades.
38- A mera existência da Biblioteca Municipal de Oeiras, onde me enterro em almofadões, no chão, folheando e escolhendo.
39- Meu irmão. Tão divergente, por vezes, de mim, tão em guerra, mas tão próximo quando mutuamente nos devolvemos.
40- O riso e o sentido de humor. O super-poder de criar gargalhadas. Contagiar.
41- Os cães. Não vivo com nenhum cão, mas vivi, em diversas fases, com magníficos companheiros, e a minha vida está cheia deles.
42- Paris. As memórias, e o encontro marcado. Para breve.
43- Um percurso matutino, no Inverno, pela marginal, antes do nascimento do trânsito.
44- A resolução de problemas. Quando algo parece dramático e, em algum momento, conseguimos que deixe de o ser.
45- A literatura policial. Os clássicos, Christie, Chandler, MacDonald, e os recentíssimos nórdicos.
46- Uma viagem de comboio, sentado, tranquilamente, à janela.
47- Uma viagem de eléctrico, entre uma algazarra de línguas estrangeiras.
48- Uma viagem de avião. A própria espera, o seguir no bus pela pista, sentar-me. Até o tempo da refeição, de que se diz tanto mal e me faz sentir em transe.
49- Jornais e revistas em múltiplas línguas: brasileiros, ingleses, espanhóis, norte-americanos, italianos.
50- O dia secreto (há sempre um) em que me perco de mundo, e ninguém sabe de mim, e nada sei de quase ninguém.
51- Comprar roupa, o que nem ocorre com a excessiva frequência do típico consumista. Mas fazê-lo porque gosto, não apenas por necessidade.
52- Usar lentes de contacto. Melhor seria ver bem: mas, para um sujeito que, até aos vinte e muitos anos, esteve prisioneiro de uns óculos graduadíssimos, é inimaginável a libertação proporcionada por umas lentes de contacto.
53- As ideias fixas que periodicamente cultivo: agora, uma lambreta, uma boa máquina fotográfica.
54- Uma pasta com folhas, lápis, borracha, régua, canetas de tinta-da-china. A ideia de tornar ao desenho.
55- A poesia. A descoberta de um poema. O arrepio da beleza. Ruy Belo. Herberto Hélder.
56- A inesgotável curiosidade. O abençoado espanto. O poder de me maravilhar.
57 - Ser-me. Neste preciso ponto da minha vida, que não trocaria por nenhum outro.

Pela paciência com que me seguiram, provavelmente discordando e surpreendendo-se devido à fragilidade de algumas entradas, muito, muito, muito grato.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

MÃE


Louis C. K., um stand-up comedian, ou, em português, um cómico de palco, com um humor a rasar o obsceno e o ofensivo, que, num país como os EUA, tem um efeito colateral e surpreendentemente salutar, refere, no seu cinismo, um episódio a que não resisto.

Depois de um desafio de football americano, um jovem atleta, responsável por um excelentíssimo desempenho, o qual dera a vitória improvável à sua equipa, foi entrevistado para uma estação de rádio, e disse, comovido: "A minha mãe morreu este ano". Pausa. "Porém, sei que, no céu, ela viu o jogo. Sinto-me feliz!"

Louis C. K. mostrava-se furibundo. Nem na morte a mãe poderia descansar?! Terá de se preocupar com os actos do filho para sempre?  Vigiar, ajudar, ralhar, elogiar, acompanhar? Imaginava um bando de anjos convidando-a para uma festa de anjos, e a senhora a dispensá-los, com um ar macambúnzio: "Não posso, desculpem. Tenho de ficar a ver o jogo do meu filho."

L. C. K. tem uma certa, sarcástica, terrível razão. A ideia de que os filhos são criados ao longo da infância, adolescência, juventude, isto é, tornados iguais a nós (felizmente sem sucesso), entre crises e recompensas, para, uma vez adultos, partirem em direcção ao nascer do sol, abandonando-nos com uma lágrima e uma culpabilizante sensação de alívio, ou de Missão Comprida, perdão, cumprida! é um mito que a prática se encarrega de amarfanhar. Os filhos não partem. A sua vida nunca deixará de nos dizer respeito. Uma espécie de ligação umbilical fará que se lembrem logo e sempre de nós quando lhes ocorra a pergunta: Com quem hei-de deixar esta noite os miúdos, ou este fim-de-semana, ou estas férias?

Infelizmente (e isto arruinaria a piada de Louis), o contrário também se verifica; digo "infelizmente" porque a dependência é sempre infeliz: pais que, vivendo muitos anos, a partir de certo momento, inevitavelmente entre achaques e medicamentos, se tornam como filhos dos filhos. E igualmente aí se intui a qualidade do cordão umbilical. Uns, aturam-nos, gratos e deprimidos. Outros, internam-nos ou viram costas.

Uma mãe ou um pai são mais do que três letrinhas. São laços para a vida; para a vida e - L. C. K. tem razão - para a morte.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

GoT



Em primeiro lugar, chamo a atenção para a sábia e estimulante concisão do meu título, que é um piscar de olho aos milhares que elegem Game of Thrones a uma série de culto, revelando, ao mesmo tempo, o meu estatuto de cromo familiarizado com a gíria. O que, no caso, é falso, pelo menos a esse ponto: aprendi ontem, no Facebook e por acaso, o que significa GoT (Game of Thrones, precisamente).

Duas amigas minhas reagem com algum enfado a esta histeria colectiva a propósito de uma série. Uma delas, há algum tempo, escrevia: «Que refrescante ouvir todas as pessoas a falar acerca de A Guerra dos Tronos, Cercei ou Tyrion, e não fazer a menor ideia do que estão para ali a dizer.» Este «para ali a dizer» dói. Mas coitada. Sentir-se desintegrada é um pesadelo que, infelizmente, conheço demasiado bem. Vangloriar-se do facto, já me parece grave. Nada a acrescentar.

A outra amiga ironizava, numa mensagem: «Vou aderir ao 1% de portugueses que não segue A Guerra dos Tronos

No caso desta última amiga, o paradoxo é desconcertante, porque calha ela ter seguido, durante séculos, a série Lost - que, essa sim, me deixava completamente «lost», a interrogar-me sobre um obeso, de cabeleira e barba, a passear-se por uma ilha, um asiático que não entendia a língua dos outros, um homem de grande crueldade, apesar de a sua provecta idade aconselhar a que se não exaurisse em planos macabros e, o melhor de todo este idílico disparate, a obrigação de se ir marcando o ponto numa ridícula máquina, sim, numa ilha deserta, sem o que poderia acontecer - bem! nem eles sabiam o quê; provavelmente, nada de mais.

Parte do prazer de nos entusiasmarmos com A Guerra dos Tronos é, concedo, o sentimento de pertença a uma comunidade. Há ícones, frases (The winter is coming), nomes (Cercei ou Tyrion, justamente), suspenses, em síntese: as inúmeras referências fundadoras de um mundo do qual, de algum modo, fazemos parte. E essa comunicação torna-se eléctrica, viciante, ruidosa, exaltante.

Mas, sobretudo, para lá do fenómeno da comunicação que o orbita, tal mundo contém, desde o início, o magnetismo que nos atrai. Ou melhor: compreendo que possa não atrair todos, sobretudo pessoas com menos paciência para sagas fantásticas, com dragões (mas não muitos, na verdade: trata-se de uma espécie praticamente extinta), uma irmã que dorme com o irmão, um Exército de Mortos, um anão sábio e sarcástico ou heróis que são periodicamente ressuscitados. A esses torcedores profissionais de nariz, a esses espíritos tacanhos e burocráticos, recomendo que se mantenham agarrados às suas costumeiras sensaborias, como o C.S.I. Aí, pelo menos, livram-se de outras surpresas que não sejam ver o empregado de Cheers, um certo bar do meu tempo, metamorfoseado em detective.

Aos outros, caramba! digo que poderão mudar decisivamente as suas vidas. É nada menos, afinal, do que a recomendável série que une benfiquistas, portistas, sportinguistas e por aí fora, vegetarianos e gente que não viu a Luz, professores, alunos, mordomos, tiranos, súbditos, escravos, avarentos, perdulários, proeminentes, deprimentes, depressivos, varredores, corredores e bloggers. Une-os numa atracção fatal. Faz-me lembrar quando o país inteiro, incluindo a Assembleia da República (que é, em si mesma, um país, e em geral estranho ao país), estacionou para, onde houvesse um televisor, se acompanhar o fim de Gabriela, Cravo e Canela. Pois A Guerra dos Tronos possui, hoje, um similar poder. Personagens intrigantes, inesperadas, rivalidades mortais, alianças feitas e em breve desfeitas. Mais um bónus: a dor de alma que se crava, em todos os espectadores fiéis, perante a suprema facilidade com que se deixa morrer figuras essenciais, por quem porventura nos apaixonáramos, ou sem as quais julgámos que nada mais seria igual.  

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

PALAVRA DA SALVAÇÃO



     No regresso de uma viagem que tenho de fazer todos os fins-de-semana, à noite, sozinho e cansado, pela ponte sobre o Tejo, de pálpebras colando-se-me, a única companhia que me resta é, imaginem, a da rádio. Vou fazer uma confissão: entre as estações e os programas que se me oferecem ao mexer de um dedo - desde os que despejam anúncios a uma dieta miraculosa, concebida de acordo com o seu ADN, ou anúncios ao Novo Banco (Deus me guarde!), até aos que me encantam com a música do excelso Bach, que, naquela situação, me adormeceria de imediato; desde os que usam a voz repousante de um locutor para me acompanhar, o que é pouco recomendável, até aos que me espevitam com rock, que me desgastaria os nervos fatigados - o que realmente prefiro, o que me desperta mesmo, é qualquer uma das estações em que, àquela hora, consiga seguir a actuação de uma seita.

Os pastores brasileiros, neste particular, são do melhor que há. O seu espectáculo entretém garantidamente. Sem o menor vestígio de vergonha. E não me refiro a vergonha por enganarem e extorquirem, isto é, pela manipulação da credulidade. Falo apenas da vergonha imediata pela figura, pelo excesso, pelas vozes, pelos gritos. Em pouco tempo, caio nas profundezas do inferno, reconheço o jogo de Satã e dos seus apaniguados, percebo a movimentação das hostes do Mal, tentando cercar-me e consumir-me, e escapo às costas de um bispo, que me protege e me conduz em direcção à Luz.

O momento de ouro do show radica na sucessão de entrevistas a pessoas humildes, que vêm prestar o seu testemunho. Excitadíssimo, um pregador ouve uma cabo-verdiana contar, numa pronúncia imperceptível, como sua filha entrara para o escalão dos campeões, logo após a cerimónia em que a mãe a entregara à Luz. «Quer dizer que ela agora é uma campeã?», certifica-se o pregador. «Sim, Pastor.» «Quer dizer que ela entrou, com dezassete anos, para o grupo de atletas com vinte anos?» «Sim, Pastor.» (Não me lembro de a ter ouvido referir estas idades suspeitas, mas com certeza que o homem não iria inventar dados tão específicos.)

Ou outra mãe. Esta, de um filho «rebelde», que «comprava briga» continuamente, e não queria de modo algum que ela lhe limpasse o quarto. Só para terem uma ideia: de uma vez, até, em que a mãe o fizera em segredo, o rebelde, deparando com o facto consumado, urrou de fúria e partiu tudo, cadeiras e «camas» (teria mais do que uma?).
Pois no próprio dia em que a mãe o consagrou à Luz, o jovem tomou a inesperada iniciativa de lhe dizer: «Mãe, anda arrumar-me o quarto, que isto realmente já chegou a um ponto em que se não pode lá estar».
A mim, como qualidade de milagre, ter-me-ia entusiasmado mais que o moço lhe dissesse: «Mãe, nunca mais te preocupes com o raio do quarto, que, daqui em diante, cuidarei eu mesmo desta nojeira». Porém, para o Pastor, parecia já suficiente prova da mão de Deus um rebelde, que «partia as camas, e tudo» à simples menção de lhe arrumarem o quarto, ordenar, um dia, à progenitora que o fizesse. Aleluia!

Não pensem que faço pouco. Na verdade, é um teatro empolgante, mas que me deixa amargurado. Se a fé pode exibir-se como uma opereta que mantém acordado durante uma solitária viagem, por outro lado apavora-me. Estas pessoas que se põem cegamente nas mãos que lhes prometem curas e prosperidade são pessoas esmagadas pela vida, sem dinheiro nem sentido, sem paz nem futuro. Guia-as a mesma centelha de irracionalidade que arrasta, outras, a gastar religiosamente, todas as semanas, no Euromilhões, ou numa infindável série de sessões de psicanálise. Mudam os deuses, mas o mecanismo que permite crer numa solução súbita e mítica para todos os problemas, isto é, num milagre, está presente em todos.

Às vezes, deixa um sujeito submerso vir à tona, respirar e subsistir. Mas quase sempre degrada. Em última análise, paga uma vida faustosa aos pregadores. Para estes é que se terá operado o autêntico milagre. Aleluia!            

domingo, 20 de agosto de 2017

LER QUANDO O TEMPO NÃO SOBRA


O que quer que se faça para próprio prazer e requeira tempo é uma espécie de prodígio. As pessoas miram-me com susto, quando lhes falo de livros que venho lendo, ou de romances que estou a escrever. O drama é sempre o tempo. Na verdade, para essas pessoas, o drama parece ser o meu tempo - isto é, que eu disponha de algum para essas coisas. Como se algo não estivesse bem comigo. Nunca chego a sentir-me propriamente um criminoso ou um pecador. Mas um preguiçoso, sem dúvida. Alguém que se dá ao luxo de ler ou escrever, enquanto os outros trabalham.

Evidentemente, não é verdade. Uma mãe adorável, que, aos 94 anos, me pede alguma atenção, ou dois filhos com 10 anos de diferença entre si, são, em conjunto, amorosos e exigentes sistemas de necessidades, sem botão que os desligue quando faria falta uma pausa.

O meu trabalho ocupa-me manhãs e tardes. Diria que, ter de o cumprir numa escola, compensadora em muitos aspectos, mas que funciona como uma geringonça, multiplica aleatoriamente as tarefas e torna qualquer possibilidade de realizá-las uma epopeia. Não senhor. Não podem acusar-me de passar os dias sentado.

Talvez as minhas prioridades sejam invulgares. Leio sempre que posso, ou seja, literalmente nos momentos mais imprevisíveis e absurdos e em todo o lado: na casa de banho, no automóvel (estacionado), em casa de minha mãe, nos intervalos da escola. No quarto, pela noite fora. Ou na cozinha.

Não sacrifico nada. Nem as minhas séries de tv, que sigo como um beato, nem as conversas com os amigos, quando tenho oportunidade. Não leio em vez de outras coisas. Faço coisas que devo fazer. Às vezes, infelizmente, faço coisas que não devia fazer, como todos. E faço coisas que me dão prazer. Entre as quais, ler e escrever.

Não tenho tempo a mais. Apenas sei que o que tem de ser feito, tem de ser feito. O tempo que se ajeite.

sábado, 19 de agosto de 2017

VOTAR


Espelho, espelho meu, quem sou eu?
Não serei seguramente Montaigne, pelo que um essai tomando por tema a minha própria pessoa, seria, com certeza, abominável e confrangedor. Mas nada temam, porque já leram o título desta crónica. O assunto a que me interessa chegar - e espero fazê-lo com brevidade - é, portanto, um outro.

Para o trio ou quarteto de leitores regulares das Crómicas, deve ser difícil enquadrar-me. Convenhamos que não sou linearmente catalogável, o que poderia considerar-se uma virtude, a independência de espírito, ou um defeito, a ambiguidade e a incoerência.

As águas por que me aventuro são, inequivocamente, as de um oceano à esquerda. Sem filiação partidária, mas à esquerda. E no entanto, embaraça-me confessá-lo, soa-me mais a pesadelo do que a sonho a ideia de uma sociedade governada pelo Bloco, já para nem falar do PCP. As ideias que defendem são, em geral, justas e boas. O problema é que conheço as pessoas: o tipo de pessoas, e aquele seu fervor religioso, que se topa ao longe. Vi como essas pessoas, em nome precisamente das ideias, podem devorar outras pessoas, a quem chamavam "camarada".

Não me lembro se me senti compelido a votar em Marisa para a presidência. Mas o meu Presidente é Marcelo, cuja proximidade com o povo, que somos todos nós, me deixa rendido.

Sou vegetariano. Mas ser vegetariano é uma decisão que contém a sua própria utopia particular e, apesar de um vegetariano coerente ser um anti-capitalista, não estou certo de que se trate de uma escolha que se identificasse como de esquerda.

Meu filho insulta-me, chamando-me "politicamente correcto", mas as pessoas politicamente correctas com que me cruzo, as autênticas, arrepiam-se quase sempre que abro a boca.

A pergunta, que me permite sair no prometido destino, é se, partindo destes elementos, que não se ajustam em qualquer sistema, podíamos prever em quem vou votar nas eleições autárquicas. Duvido muito. Em última análise, nem eu sei. Apenas em quem não votarei nem votaria de modo algum.

No leque de personagens, que se abre, há de tudo, como na botica. Desde gente a contas com a justiça, caçada em corrupção (mas em sério risco de vencer, porque se há coisa que o povão perdoa é a corrupção), até pessoas que pouco ou nada sabem sobre o concelho em que se propõem mandar. Desde tipos enraizados, como eucaliptos, no antigo posto, até outros que nos sorriem, em outdoors, mascarados de independentes, embora ninguém ignore de que massa se fez essa idependência. O que possibilita que irmãos desavindos multipliquem listas rivais para a mesma Câmara. Desde a líder de um partido, que, não confiando em ninguém mais, se lança numa aposta radical e suicida, até aos fulanos feios e abrutalhados, que parecem esperar-nos para uma pega de caras, numa lista assumidamente patriótica. E absolutos desconhecidos.

Será mais fácil, bem vos dizia, ir excluindo.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

HACKERS E MULHERES


Embora me desagradem os hackers (sendo desagrado, aqui, um eufemismo para ódio), não posso evitar uma quase religiosa admiração pela sua inteligência. Tanto talento desperdiçado em gente tão maldosa e desprezível. Imagino-os doentios, magros e de ombros estreitos, a barba por fazer, o cabelo a falhar em várias áreas do crânio, uma barriga proeminente, das pizzas e da cerveja que os alimentam, sob uma t-shirt com um logotipo. E nenhuma ética! Estes, que imagino, não usam as suas competências para as causas meritórias, para denunciar os crimes do Estado ou dos banqueiros: esses são outros. Estes são os que empregam os cérebros geniais para furtar dados de anónimos honestos, furar a privacidade de gente como eu, enganar cidadãos que usam a internet sem pretensões, sacar dinheiro, sempre que possível, aos simples e aos bem-intencionados.

A mim, enganam-me continuamente, os filhos de uma coisa. Recebo um e-mail "inocente" e respondo-lhes, ou uma informação em nome do meu Banco, e tendo a seguir as instruções, ou um telefonema de um número desconhecido, e atendo, ignorando que, algures na Polónia, me vão clonar o cartão. Alguns dos golpes parecem bizarros, e são prontamente desmentidos por quem sabe do assunto. Outros, que eu trataria como rumores, são confirmados pelos peritos. Ou seja, as histórias multiplicam-se, numa espécie de mundo mitológico, em que o leigo que eu sou se tornou incapaz de dissociar o verdadeiro e o falso, distinguir o factual e o impossível. Sou a vítima perfeita e reincidente.

Recorro a amigos que me ajudam e aconselham. «Elimina isto». «Não ligues àquilo». Entram nas minhas páginas, no meu mail, no meu Facebook, como anjos da guarda, para desfazer as armadilhas em que me deixei enredar. A minha perversa admiração por esta gente infame é apenas técnica. É, digamos assim, a admiração de um cérebro mortal, inocente, impreparado e, por que não dizê-lo? estúpido, pelos cérebros demoníacos, viciosos, astutos e rápidos.

Sou, provavelmente, eu próprio, quem se enganou de mundo. Não pela minha ética, nada disso! mas pela minha impreparação. Não compreendo a linguagem que os hackers dominam - por isso nunca conseguirei reagir-lhes eficazmente e hei-de estar sempre um passo atrasado -, da mesma maneira que não consigo decifrar as mulheres, ou, pelo menos, uma certa linguagem, ou um código vagamente subentendido no modo como os homens se relacionam com elas.

Porque há um código. Porque há, num caso como noutro, um entendimento implícito. Olhares, gestos, palavras que significam outra coisa. E, num caso como noutro, me passam ao lado.

Há muitos anos, muitos mesmo, uma jovem colega falava da casa que acabara de comprar. Estava maravilhada e orgulhosa. Queria que eu a visitasse. Convidou-me, portanto, para jantarmos em sua casa. Não era uma amiga de longa data: apenas uma jovem colega, como a classifiquei, amiga recente com quem eu gostava de conversar. O ponto é que aceitei. Ou melhor, o ponto é que aceitei literalmente o convite: jantar, como pretexto para conhecer a sua nova casa.

Nada mais do que isso aconteceu. Foi um jantar animado, em que comi não me lembro que prato que ela confeccionara, lhe elogiei a casa, vimos o telejornal e me vim embora. Sem a menor tensão ou suspeita de estar a falhar relativamente a expectativas de outra ordem.

Só anos mais tarde, quando contei esta história a um amigo, este me explicou, convictamente: «Uma mulher que convida um homem para ir jantar, sozinho, a sua casa, nunca o faz sem uma segunda intenção.»
E eu: «Mas pode não ser. Imagina que, simplesmente, se confia na outra pessoa e, de facto, se tem gosto em que um colega conheça a casa nova.»
O meu amigo fitou-me, em silêncio, durante bastante tempo. Talvez com piedade.

Ele poderia ter ou poderia não ter razão.

Certo é que essa colega passou a tratar-me friamente. Até que deixou praticamente de me falar. Nunca mais nos vimos.
Seria por não lhe ter dito, as vezes suficientes, que tinha realmente uma linda casa nova?

POMBOS, PRETOS E CIGANOS


Quando eu era garoto, deliciava-me com o pombal do Tio António. As suas pombas não tinham qualquer utilidade prática. Não eram pombos-correio, nem seriam objecto de venda; nada acrescentavam, de facto, ao prazer que meu tio fruía, todas as manhãs, antes de sair para o seu absorvente serviço, em conviver com as aves, lançando-lhes punhados de milho entre alegres crrru-crrru.

Portanto, sim, encantavam-me as suas pombas. Tanto, que certo dia, agarrei numa (o que, se bem me lembro, foi muito trabalhoso) e a levei para minha casa. Que desastre. Voava pela sala, repousando momentaneamente, da sua aflição, em pontos aonde não a alcançávamos e, é verdade, emporcalhando tudo em redor. Devolvemo-la ao seu mundo. Mas, por um momento, vibrou o meu sonho de fazer, de uma ave branca, lindíssima, um animal doméstico, que eu alimentaria carinhosamente e me pousaria no ombro ou no dedo.

Não foi certamente por me ter tornado mais sábio ou mais informado que passei a sentir-me incomodado com os pombos, a encarar o seu cocó sobre o tejadilho do meu carro como uma declaração de guerra, a enervar-me com o seu à-vontade entre os humanos, sem os temer nem lhes fugir: sem nada da proverbial timidez das suas antepassadas.

Durante anos, o melhor amigo de meu filho foi um jovem negro chamado Filipe. Natural e espontaneamente, davam-se como se nada os diferenciasse. Riam e brincavam juntos. Sentiam saudades um do outro. Meu filho é já, praticamente, um adulto. Não se tranformou entretanto num membro do KKK. Mas conversando com ele, percebo, amiúde, que não tem, hoje, amigos negros e que é capaz de pensar que estes trazem, para Portugal, problemas que dispensaríamos.

Minha filha sente um fascínio pelas jovens ciganas. Quando as vê em grupos, no Oeiras Parque, de grandes cabeleiras, ostensivos brincos e roupas brilhantes, com que a idade dela se identifica completamente, segue-as com um olhar de admiração e de inveja. Mas receio que, infelizmente, qualquer dia, na sua boca, a palavra "cigana" haja adquirido a mesma conotação que para a maioria dos portugueses. Quando, como? Que conjugação exacta de elementos conduzirá, inconscientemente, a essa transição?

Julgo que, em todos os casos, estamos perante um mecanismo muito semelhante, que é o da formação de um preconceito. Em algum tempo da evolução da humanidade, essa tendência para olhar o outro como uma ameaça, e para a diferença no meio de um espaço que demarcámos, como intrusão, há-de ter sido, com toda a certeza, de extrema utilidade para a sobrevivência do grupo. Mas toda a experiência me ensina que esse mecanismo não é activado senão pelo reforço dos nossos educadores. A percepção daqueles seres vai sendo influenciada e distorcida, à medida que vemos associar, sistematicamente, certos indivíduos a uma espécie de repelência.

Com o tempo, devém automática. Invade-nos. Está em nós. Fazemos prelecções contra o racismo, mas se a inteligência crê nas nossas palavras, um sentimento larvar de medo ou desprezo permanece.

É por isso que, para um idiota carismático, nunca é difícil despertar os nossos preconceitos e um racismo profundo.

Nunca me espantei que milhares de alemães percepcionassem os judeus como ratos, como sub-humanos. Espantou-me sempre muito mais que uns quantos resistissem ao condicionamento, à propaganda e à poderosíssima atracção do rebanho: participar da mediania, pensar, sentir e ver em grupo.

Porém, houve-os sempre. Gentios que apoiaram judeus, os protegeram e salvaram, correndo o risco da própria vida - sua e dos seus.

Tanto basta para nos fazer pensar.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

INTOLEREMOS


Cumprimo-nos, como seres humanos, no uso virtuoso da razão. Este era Aristóteles a falar. Todavia, há situações em que a irracionalidade de certos homens nos torna, também, pouco aptos para o uso da razão. É igualmente cumprir a humanidade em nós, portanto, assumirmos que, perante aquilo que nos choca, até a resposta violenta se justificaria. Não há virtude sem emoção e, tantas vezes, uma emoção impaciente, exaltada, que se indigna e tem pouca propensão para perdoar.

Puxam-me pela manga. Recordam-me o valor da tolerância (que é, já de si, um termo equívoco). Mas, se ao longo da História e do pensamento político, essa ideia representou um papel fulcral para a aproximação dos homens, dos povos, e para a compreensão das diferenças, o facto é que ser-se humano deve exigir que tracemos um limite. "Isto", dir-nos-emos, "é intolerável". Não podemos aceitar, seja em nome de uma cultura, em nome de uma tradição, em nome de uma necessidade. Em nome de nada. Não posso, aqui, relativizar. Eles estão hediondamente errados. Ponto final.

O assassinato ou a tortura, claro: mas não me refiro a esses indignos casos extremos e, de certo modo, longínquos, de escolhas que já não são humanas. Refiro-me aos comportamentos intoleráveis daquela gente que conhecemos ou poderíamos conhecer, nos cumprimenta, frequenta o mesmo café. Falo na intolerabilidade de se ser um aficcionado do "espectáculo tauromáquico" ou da caça. Ou de abandonar um animal doméstico porque se vai de férias. Ou maltratar um cônjuge, ou os filhos. Ou atropelar e fugir. Ou - é o que está no meu espírito, desde a primeira palavra desta crónica pouco cómica - provocar deliberadamente um incêndio.

O mal tem a mais banal das figuras. Alguns dos incendiários serão doidos varridos, de olhos muito unidos e bocas mudas e babadas. Mas, e os outros? Os que se sentam, à noite, com a família, seguindo os noticiários, com um infame e secreto brilho de orgulho nos olhos? Porque pagaram a um reformado, ou se trata do próprio reformado, ou do proprietário de uma empresa que lucrará, ou... Pensar que eu não cria, quando me sugeriam haver, nisso, interesses económicos. Não os compreendia, então. Não os compreendo agora. Nunca entenderei.

São seres vivos para aquém de qualquer perdão. Não é possível um texto cómico. Nem ao menos um texto inteligente. Só uma crónica incendiada.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

COMO GASTAR SEM CULPABILIDADE


Nos países ricos, particularmente nos EUA, existe uma geração de jovens muito bem sucedidos que sentem uma culpa agreste por se terem dado tão bem na vida, num mundo assolado pela miséria. Compreendo-os perfeitamente: passaram os anos felizes combatendo o "sistema", mas o sistema recompensou-os. Aproveitou, caros, a sua inteligência, a sua criatividade, o seu talento e o seu trabalho. Tinham boas ideias, e o tal de sistema, que pode ser infame, mas não é parvo, comprou-as e enriqueceu-os. De modo que esses milionários precoces atenuam, hoje, o sentimento de culpa, adoptando crianças do 3° mundo, investindo em projectos de beneficiência, apoiando todos os rios de luta contra a pobreza e o sofrimento.

Longe de mim querer comparar-me com eles. Não sou um jovem bem-sucedido, embora tenha noção de que me faltariam, para isso, apenas dois requisitos: ser jovem; e bem-sucedido. Porém, é-me familiar essa angústia perante o próprio dinheiro. Tendo sido educado religiosamente, naquela inflexível recusa dos bens temporais, e tendo, mais tarde, sido reeducado por uma cultura de esquerda, que mantinha, paradoxalmente, o mesmo desprezo em relação às " cenas materiais", habituei-me à ideia de que, quando gasto, comigo ou com os meus, em " luxos", estou, de certa forma, a roubar a alguém.

Precisei de tempo para desmontar a hipocrisia subjacente. Para reconhecer que o meu salário não é o pagamento de um crime contra os pobres, como se eu fosse um banqueiro ou um assassino contratado. É a retribuição do meu trabalho, aliás insuficientemente reconhecido e, por isso, mal pago. Posso (devo) sentir-me incomodado por usufruir de oportunidades, ou condições, ou mesmo benefícios, com que uma vasta maioria nem sonha. E sempre foi importante que esse aguilhão me picasse a consciência e me levasse a intervir social e politicamente. Mas trata-se, em última análise, sempre de uma escolha. Uma decisão ética. Não uma dívida.

Por isso mesmo, aprendi a sentir que mereço o que consigo comprar. Enumerava, no outro dia, diante de amigos, os meus últimos desejos. Chamem-lhes caprichos: uma lambreta e uma boa máquina fotográfica. Nunca resistirei a livros nem a viagens, que dão sentido à minha vida e uma figura à minha felicidade. Cinema, teatro, música. Netflix, já agora.

Claro que a realização de gostos dispendiosos me torna um privilegiado no interior de um sistema que produz sem-abrigo e desempregados. E o facto de pagar conscienciosamente os meus impostos é insuficiente para que a minha consciência adormeça. Recuso-me, pois, a tornar-me um zombie. Tanto no que respeita a tudo aquilo em que posso tocar para contribuir para a mudança, como em tudo aquilo em que posso tocar porque me dá prazer.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

NACIONALISMO


Vivemos sob um governo das Esquerdas, o que me soa bem. Aparentemente, a uma parte considerável do país, também. Coelho voltou para a cartola e já nem no próprio partido há quem o oiça sem imediatamente se interrogar sobre como, ou quando, se livrar dele, não tendo de o matar. A não ser metaforicamente. Cristas multiplica-se em projectos, sim, mas, aos que não são apenas insípidos, subjaz tamanha arrogância, que se percebe que espécie de desespero a move.

Mais do que tratar-se de um governo de Esquerda, é uma geringonça. Ou seja, uma estrutura periclitante, que exige a contínua negociação entre uns partidos impacientes, e um outro que não tem a mesma urgência e não pode deixar de levar em consideração diversos compromissos e clientelas. O que poderia resultar num saco de gatos, tornou-se, pelo contrário, numa garantia de mútua vigilância e em acordos razoáveis.

É uma solução inédita na Europa. Só a Direita não compreende (ou não lhe interessa reconhecer) que esse equilíbrio entre objectivos divergentes não significa um país submerso no caos. É uma inesperada vantagem e um enriquecimento da democracia.

Teóricos políticos de toda o mundo reflectem sobre a diferença portuguesa. Um governo eficaz da Esquerda mais a inexistência de um nacionalismo louco e radical à semelhança do que grassa na Europa e nos EUA.

Ora, tenho, sobre a ausência de um nacionalismo forte, em Portugal, uma tese que não me vai granjear popularidade. Sou pessimista. Não é que não haja xenofobia entre nós. Não é que, mais ou menos secretamente, não sejamos racistas. Não é que, no autocarro, não digamos mal dos ciganos, ou que, no automóvel, olhando em redor, não pensemos que há demasiados estrangeiros a fruir o nosso sol e as nossas praias. O nacionalismo português, no seu pior, escorre pelas paredes, alastra nos corredores, atravessa a História, sufoca-nos.

Deve-se, porventura, à falta de imaginação e de energia, que não tenham surgido um partido ou um líder nacionalistas atractivos para os desempregados, para os miseráveis e para os ricos de mais. Uma lusa Le Pen, um luso Trump. Quando tropeço em comentários racistas na Internet, percebo que a falta de uma Extrema-Direita politicamente organizada, entre nós, não será certamente consequência de uma melhor natureza ética dos portugueses. É uma sorte que não fizemos por merecer. Como o clima, Sintra ou a Geringonça.

domingo, 13 de agosto de 2017

POR QUE SOU VEGETARIANO


Num livro de que tenho falado ultimamente, Jon Ronson escreve, e cito de memória, que se tornou vegetariano porque foi sendo confrontado, ao longo de várias reportagens, com o espectáculo do morticínio de animais em que assenta a alimentação humana. Concluía afirmando que, apesar de, por vezes, sentir a falta de um bife (menos, porém, do que previra, acrescenta ele), nunca poderia pactuar com a carnificina. Gostei da ideia. Transcrevi-a no Facebook.

Se esperava risos dos carnívoros, o que de imediato recebi foram comentários de duas boas amigas vegetarianas. O bife não faz falta, sentenciava uma. Ele não é um genuino vegetariano, acusava outra: a carne não deveria ser sequer objecto de desejo.

Ora a mim agrada-me, em Ronson, precisamente a coerência. Como Angel, o vampiro convertido ao Bem, que decide, por um acto puro de vontade, contrário às suas inclinações, nunca mais se alimentar de sangue humano, também Ronson sabe que a sua natureza tende para o pecado. Para ele, ser vegetariano não é automático. Foram demasiados anos de uma educação que o condicionou. Tomando consciência, encetará a sua luta. Mas é uma luta diária, como a de um alcoólico em remissão. O perigo espreita de todos os lados: memórias de sabores, cheiros, imagens. Fará dele, esta confissão de uma fraqueza intrínseca, que combate quotidianamente, um homem menos bom, um vegetariano menos vegetariano?

Sou-o há pouco mais de um ano. Earthlinks foi o filme que me empurrou para uma decisão em que, digamos assim, trabalhava há algum tempo, mas não acreditava ser capaz de pôr repentinamente em prática. Pu-la. A realidade que o filme expunha não me deixava dormir. Obcecava-me. Da confissão de Jon Ronson, sublinharia, hoje, o "falta-me menos do que antecipara". Na verdade, já não me faz falta. Deixou de ser um sacrifício. As alternativas são inúmeras, saborosas, compensadoras. Passei até a cozinhar, coisa que evitara metodicamente e para a qual não sentia a vocação.

Há sempre alguma incompreensão por parte de amigos, sobretudo em almoçaradas ou jantaradas. Olham-me como se eu me tivesse tornado alguém que abdicou de uma parte essencial de prazer e bem-estar na vida. Estão enganados, é claro, mas dá certo trabalho ter de o repetir tantas vezes.

Não faço discursos. Não tenho o objectivo de converter pela palavra, que é, tantas vezes, um instrumento contraproducente. Às vezes é mais simples: uma amiga minha, pelo simples exemplo, " vegetarianizou" dezenas de pessoas à sua volta.

A única evolução será neste sentido, que é o do despertar da consciência e da sensibilidade. Há um argumento que nunca conseguiríamos varrer para debaixo do tapete. É como um nódulo. Ignoramo-lo, mas lá está: o prazer e o luxo da carne no nosso prato significam, necessariamente, o sacrifício atroz de um ser vivo. Pessoalmente, não tenho a menor dúvida de que a civilização humana de séculos por vir, há-de olhar para a alimentação carnívora dos seus antepassados (nós) com o mesmo frémito de horror com que nós olhamos, hoje, para os circos romanos.

sábado, 12 de agosto de 2017

OS ARISTOGATOS


A minha questão é acerca de razões. As razões profundas do gosto. Não tanto do nosso gosto em geral, que posso compreender como vá sendo formado por estímulos, referências, hábitos, entrelaçando-se ao longo da infância e da adolescência. Mas de um gosto particular.

Por exemplo, The Aristocats, a brilhante longa-metragem de animação da Disney. Porque é, ainda hoje, um dos meus filmes preferidos? Não sou nenhuma criança; vejo desenhos animados quando a minha filha me obriga, mas com algum distanciamento. No género, apreciei os Simpson quando os descobri, ou Peter Pan quando o redescobri. Porém, larguei-os como lastro, de modo a abrir espaço, na minha mente adulta, para Hitchcock, Godard, Woody Allen. No entanto, anos e anos volvidos, Os Aristogatos continua sendo um filme que me faz rir e comove. Por que raio?!

Meu irmão trabalhava no Diário, em Lourenço Marques. Eu teria 10 anos. Levaram-me à redacção, onde ele me esperava para irmos ao cinema. Não existia a horrenda moda das pipocas (mas desembrulhar e trincar chocolates durante a sessão já incomodava bastante), nem a dos cinemas minúsculos. A sala era a do cinema Scala, com plateia e balcão (e até camarotes), como deve ser. Lembro-me das cortinas sobre a tela, que abriam lenta e amorosamente, perante a nossa excitação. Como devia ser.

Nada de uma catadupa de anúncios.
O filme começava. O rato, uma espécie de detective, os cães estúpidos, o mordomo ambicioso. O bando genial de gatos (amigos de Thomas O'Malley, o gato vagabundo), a tocar instrumentos típicos de jazz. Mais o riso do meu irmão, à solta durante o filme, que me embaraçava e, simultaneamente, me enchia de felicidade.

Não tenho dúvidas. Este é o cruzamento de razões em que se enraíza o prazer com que dei o filme a descobrir a meus filhos, e com que o revejo ainda. O gosto conta-nos uma história. É uma viagem ao passado.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

DEUS


Pelo amor de Deus, nunca se entreguem a debates filosóficos com bêbados. Eles adoram. Mas, se ainda não sofreram essa experiência, oiçam: evitem-na. Nem é tanto porque, cedo ou tarde, a discussão há-de ser desagradavelmente interrompida, no momento em que vos vomitem sobre os sapatos de camurça. O pior são mesmo os argumentos. A fragilidade, que é um eufemismo para a idiotice daqueles. E a inutilidade de toda a empresa. A desesperante inutilidade do vosso esforço.

A última vez que fui caçado nessa armadilha o tema era a existência de Deus. O bêbado, ziguezagueando, exaltadíssimo, pela rua, garantia-me que não há Deus. E se houvesse, teria de ser um filho da (piiiii)! Gritava-o, infelizmente, no instantezinho em que alguns rostos espreitavam à janela, para averiguar do estardalhaço.

Falava-me, é claro, das crianças que morrem à fome. "Mas as crianças, Senhor?!", já o poeta se indignava. Que Deus cria um mundo em que os seres humanos não têm as mesmas oportunidades?!

O segundo argumento seria digno de um Malaca Casteleiro. Tanto que ele orara para passar no exame de condução e, afinal, foi ribombantemente chumbado. Não se debruçou sobre o motivo do chumbo. Não devia ser um tema tão filosófico.

Não tenho a melhor das relações com Deus. Em última análise, a ideia de uma divindade pessoal, dotada de super-conhecimento, super-vontade e super-poderes, soa-me tão mitológica, pueril e implausível como a de Zeus, Thor ou o Surfista Prateado. E concordo que, a existir, nos deveria algumas explicações.

Seja como for, recuso-me a fazer de qualquer divindade o Bode Expiatório das culpas humanas, dos grandes crimes cometido pelos homens, ou por eles consentidos, no exercício da sua liberdade.

Sendo que, haver, sequer, uma moral, uma noção do Mal e do Bem, se justifica, em grande medida, pela crença em deuses que recompensariam ou puniriam actos. Podemos não acreditar em Deus, ou não acreditar totalmente, duvidando mas admitindo a hipótese, como bons agnósticos, sem termos de ser falaciosos.

Não concluí, porém, estas objecções. Tinha de ir limpar os meus sapatos de camurça.


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

COMPLEXO DE PETER PAN


Lourenço Marques, Moçambique, anos 70, antes de 1974.

Um bando de adolescentes idiotas e atrevidos, de que eu orgulhosamente fazia parte - mais o Fipa, o Nelson, o Jorginho, o Murganho, o Zé Gordalho (estes últimos nomes, hoje, seriam obviamente vetados) e, infelizmente, nenhuma rapariga - criou um empreendimento único. As Produções Ponto. Frase promocional: "Somos Produções Ponto, e ponto final no assunto".

O que fazíamos era rádio. Não emitíamos para o "éter". Apenas para o bairro, através de dois altifalantes. Montámos um estúdio na garagem da casa onde eu vivia, recebendo electricidade do apartamento (num 10° andar), por meio de um longuíssimo cabo que descia, lá de cima, até ao nosso estúdio, como se fossemos praticar slide.

Influenciadíssimos pelo boom radiofónico daquele tempo moçambicano - havia os programas da Arco-íris Publicidade, os da Tantam Publicidade, os da Delta Publicidade e os das Produções Golo -, púnhamos discos a rodar, fazíamos entrevistas, contávamos histórias. Vínhamos das aulas e abríamos o estúdio. Trabalhávamos, pois, alegre e gratuitamente em rádio. Trabalhávamos, que é como quem diz, jogávamos a isso ou fazíamos de conta.

Lembro-me de que realizámos a cobertura de uma célebre prova de corta-mato. O meu irmão - sempre 11 anos mais velho do que eu - levava-nos no seu carocha, de onde nós, espremidos lá dentro, acompanhávamos os corredores, relatando as posições relativas, os incidentes, absorvendo os suspiros, os arfares, os seus passos sobre o solo, os sons, afinal, da corrida. Nada era emitido em directo. Gravávamos para passar mais tarde.

Ao cortar a meta, mal refeitos do cansaço, quase incapazes de respirar, muito menos de falar, os atletas tinham-nos à sua espera, de microfone em riste. E respondiam às nossas perguntas. Com toda a seriedade.

Aí é que está. Esta croniqueta não é, portanto, sobre a minha adolescência, senão lateralmente. É sobre a sensação de uma brincadeira nossa ser levada a sério. Um misto de responsabilidade inesperada e de culpabilidade, como se estivéssemos a cometer uma fraude: "Coitados. Estão a entrar no jogo como se fosse um assunto de Estado, dando um absurdo crédito ao que, bem visto, é apenas uma brincadeira de um bando de crianças."

Essa sensação acompanhou-me, depois, pelo resto da vida. Se pensar bem, no fundinho de qualquer um dos projectos a que me devotei, permanecia uma criança a brincar, ou melhor, um adulto infantilóide, que nunca se levou a sério. E que se surpreendeu, sempre, com o impulso e a aura de respeito e credibilidade que, a certa altura, esses projectos ganhavam.

Alguém, no processo, estava certamente equivocado. Suspeito que não era eu.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

NADA DE NOVO SOB O SOL


Esta noite, sonhei que escrevia uma Crómica.
E, juro-vos, todas as ideias que me vinham à mente eram puramente brilhantes.
Quando acordei, lembrava-me de uma ou duas.
E, juro, de novo (mas aposto que, neste caso, nem precisava) nenhuma delas era grande coisa.
Conclusão: o sonho acrescenta fé.

Tive outros sonhos. O sonho não sobrevive à transição para a realidade. Recordo-me, acordado, do que em sonho me entusiasmara tanto, e pergunto-me: O quê, era só isto?
Conclusão: a realidade retira fé.

Talvez não fosse mau vivermos no sonho e, à noite, acordarmos um tempo para repousar.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

A SUBTILEZA DOS DINOSSAUROS



Alguns leitores tomarão, certamente, este título por ironia. Não é o caso.

Há que não subestimar o valor dos dinossauros. Os garotos amam-nos; pedem que lhos comprem em miniaturas encantadoras, com as quais encenam terríveis combates; não perdem um filme com os simpáticos monstros do início da vida animal no planeta. Há miúdos que conhecem os seus variados nomes. Os quartos de todos os putos exibem-nos em posters impressionantes. E não é por obra do acaso que os dinossauros irradiam esse fascínio todo.

Considero-os uma autêntica civilização. Criaram, do ponto de vista da anatomia ou das "competências", quase tudo o que as mais variadas espécies ostentam, hoje, pelo ar, pela terra, pelas águas. Uns quantos puseram-se a voar e, simplifiquemos! inventaram assim os pássaros; mas havia-os para todos os gostos, até do ponto de vista político, ideológico e filosófico: vegetarianos e carnívoros, senhores e escravos, obesos e anorécticos, com instrumentos e aptidões contrários, aleatoriamente distribuídos, num contínuo teste à adaptação.

Civilizacionalmente, fazem-me lembrar os Antigos Gregos que, no seu tempo, também foram e também inventaram praticamente tudo: sejamos nós cínicos, idealistas, materialistas, sensualistas, atomistas, individualistas ou colectivistas, caramba!, não estamos a fazer nada - como lembra Adriano, segundo Marguerite Yourcenar - que não tivesse sido, primeiro, uma escolha de algum Antigo Grego.

É por isso que me parece que a evolução não é sempre correcta. Se o progresso tende a simplificar, não estou certo de que essa simplificação seja uma vantagem real: e sei, sobretudo, que aquilo que aparenta ser "demasiado" gigantesco e complicado, como um dinossauro, contém em si uma subtileza, um génio, que a pura eliminação desse todo, ou a sua simplificação, necessariamente farão desaparecer.

Alguém acredita que a música tenha evoluído, de Bach a Fonsi?

Alguém crê, para além dos criminosos do costume, que a tendência para se acabar com o estudo do Latim, mais os seus casos complicados, que, todavia, apuram e treinam a inteligência e o conhecimento mais profundo da mecânica das línguas vivas, suas herdeiras, pode ser ocupada pelo estudo do Castelhano, agora em voga nas áreas de Línguas e Literaturas?

Alguém está realmente convencido de que, poupar-se, aos jovens estudantes, a leitura obrigatória dos Clássicos da Literatura Portuguesa, na disciplina de Português, seja uma evolução, uma adaptação vantajosa, um progresso real?

Ou que, em resumo, progredimos com a simplificação rasteira consubstanciada por um acordo ortográfico como este?

Qualquer dinossauro perceberia a estupidez! Mas esses eram mais subtis do que parece. Por isso, em última análise, aliás, desapareceram.

OS PRIMEIROS INSTANTES DE ROBINSON CRUSOÉ NA ILHA

Eis que lenta, lenta, lenta, lentamente desperta a consciência de Robinson Crusuoé.
Parte do rosto está mergulhada em água; doem-lhe as pernas, os braços: o que teve de nadar para chegar ali, ao princípio da ilha, àquela areia húmida, àquelas rochas aguçadas!
Robinson sabe, ou calcula, mas esse cálculo é como um íntimo saber, que ninguém mais sobreviveu ao naufrágio.
Soergue-se, vagaroso. Tudo são músculos enrijecidos, presos, ineficazes. Olha o céu imenso, de um imenso azul, riscado de pássaros.

Põe-se de pé, observa em redor. É quando, pela primeira vez, lhe passa pela cabeça que vai ter de viver sozinho, como um divorciado, recolher despojos, como um trapeiro - despojos do navio naufragado, que as ondas lhe entregam. Há madeiras, há ferros, há utensílios. Começa a pensar num universo que terá de construir a partir de nada, ou de quase nada, começa a pensar numa casa que terá de erguer do zero, que o proteja, que o anime, que o abrigue.

Aproxima-se, preso de uma súbita euforia, da costa aonde continuam a chegar materiais vindos do barco afundado. Tenho de me animar, pensa. tenho de trabalhar, pensa.

E, repentinamente, percebe.

«Oh, caraças, estou tramado! Isto vai ter de ser tudo montado ao calhas», soluça, «é tão difícil, nunca se consegue à primeira», chora, infeliz, adivinhando o trabalho que lhe vão dar as peças que lhe chegam à costa, «Nunca conseguirei», chora ele, «Oh, que horror!»

Que trabalho insano, que dias duros, que dificuldades impossíveis...

«Esta porcaria é toda do IKEA!!!»

domingo, 6 de agosto de 2017

VERGONHA PARA SEMPRE


Quando pensamos em Bill Clinton, por exemplo, as nódoas que imediatamente nos salpicam a memória não são as do seu currículo como Presidente, em que cumpriu, até, mandatos, no mínimo sensatos. Todavia, por causa dessas apolíticas nódoas, "sensatez" dificilmente será o adjectivo a figurar ao lado do seu nome, num livro de História.

Já que usamos o pesado termo História, detenhamo-nos no caso português. Que políticos portugueses contemporâneos ganharam um lugar cativo na nossa memória colectiva? Antes de me atirarem, em registo simplista, com os Sá-Carmeiros, os Soares e os Cunhais, previno-vos que me baseio em estudos sérios. A resposta correcta seria: Sócrates e Relvas.

A tese é que o embaraço público (a vergonha perante o mundo), tem, em suma,  mais eficácia sobre a memória, do que os actos meritórios. Poderei não ser esquecido como bom professor. Mas alguém duvida  de que a imagem indelével na memória dos alunos, "não te recordas, pá? ahahaha", será a da stora que, numa aula, entrou grotescamente em disputa com a aluna, por causa do telemóvel?

Essa vergonha agravou-se por ter sido filmada e posta a circular nas redes sociais. Descubro um livro de Jon Ronson, So You Have Been Publicly Shamed, e tomo consciência da medida em que as redes sociais se tornaram lugares de humilhação pública. Um deslize no Facebook, um comentário mal interpretado no Tweeter, uma frase politicamente incorrecta, que nem tinha, porventura, a intenção atribuída e depois amplificada, e o coro de abutres cai sobre um desgraçado.

Nem imaginamos, por aqui, as consequências de um erro ideológico, ou de sensibilidade, nesses meios. Temos apenas uma vaga ideia, por muito que nos irritem certos comentários a um tweet nosso; por muito que nos surpreendamos com a estupidez dos luso-haters; por muito que abominemos a cretinice dos defensores portugueses de causas sagradas, que não compreenderam a ironia. Mas, acreditem, isso nada é. Nada, ao lado dos EUA, onde pessoas populares, que eram consideradas belas, boas, bem-sucedidas, e eram idolatradas e imitadas, tombam de pedestais, perdem amigos e o emprego, e são ostracizadas para sempre.

Há-de chegar-nos a vez. Em Portugal somos demorados, mas atentos. Para a imbecilidade vingar, precisa apenas de tempo.

sábado, 5 de agosto de 2017

UM BRINDE AOS AMIGOS


Para uma crónica como a que tenho em mente, mais do que o humor de um Seinfeld, falta-me a ternura poética de um Manuel António Pina. Vou abalançar-me a um texto que me é imprescindível, sem as qualificações que desejaria. Tenham paciência.

Há quem diga, de mim, que não sou propriamente um habitante da amizade. Que me comporto mais como um turista. Um amigo platónico, por assim dizer. Alguém que não falha as jantaradas, mas não frequenta regularmente os outros. Que pode aceitar uma ida ao cinema, mas não telefona constantemente para matar saudade, para se aconselhar ou, simplesmente, actualizar os episódios da vida e ser posto ao corrente.

Pode ser que eu não tenha, de facto, esse espírito de iniciativa.
Alguns dizem-me: não há verdadeira amizade se não se pratica. A amizade é um exercício de todos os dias, ou nada.
Gostaria, porventura de mudar, mas não faço promessas. Discordo, porém, dessa ideia culpabilizante da amizade. Em Coimbra, que para mim é como se estivesse na Austrália, o J., que não vejo e com quem não converso há anos, continuará sendo uma pessoa fundamental na minha vida. O laço não se desvaneceu nem um poucochinho. Penso frequentemente no milagre de nos termos conhecido: as histórias mirambulantes que vivemos juntos não só farão para sempre parte do nosso imaginário e de uma espécie de memória mitológica, como, mais do que isso, sei que uma componente significativa da pessoa que eu sou se deve precisamente a essa experiência partilhada. E outra coisa: no momento em que nos revirmos, todo o património da nossa amizade estará imediatamente à disposição, como uma mesa posta diante de nós, um círculo de ideias, lembranças, afectos, gargalhadas, dores, ressentimentos, alegrias, tristezas, a confiança, o olhar, em suma, esta consanguinidade escolhida e adoptada.

No entanto, se discordo dessa culpabilidade, também não posso dizer que a mera certeza, em teoria, da amizade por cada um dos meus amigos, me seja bastante. Essa ideia, essa esperança de que "um dia estaremos juntos de novo". (Espero que não seja só no Reino de Deus). Preferia que a amizade fosse um enconto e o reencontro quotidianos. Numa vida que se desagrega, instável e demasiado curta (sempre demasiado curta, mesmo nos casos em que, pelos padrões humanos, se trate de uma longa vida), todos os momentos em que não estamos com os amigos, e poderíamos estar, constituem um roubo. É violento pensarmos nisso.

Não culpo "a vida", seria muito fácil. É verdade: "a vida", que se torna pesada e rotineira,  cerca-nos, entre solicitações e compromissos, e deposita-nos, ao fim do dia, como náufragos, na borda da cama. Mas mais uma razão: para que a nossa vida se não esgote na " vida", nesta "vida" acelerada em direcção a coisa nenhuma, há que praticar os amigos. Não sei bem como se inicia isso. Não sei.

Talvez escrevendo uma crónica para me lembrar de que há, aí, um trabalho.
Talvez pegando no telefone.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

NÃO SE BRINCA COM CERTAS COISAS (MAS NÃO ESTOU A BRINCAR, ESTOU A NARRAR)



A minha... a minha quê? Principiemos, pois, por aí. Que me é, exactamente, a mulher de um meu primo? Quase-cunhada? Cousin in law, atendendo a que ela é norte-americana?

Enfim, essa mulher optimista, certa noite em que eu os convidara para jantar, olhava-me, há já muito tempo, com uma fixidez lancinante, incómoda, perturbadora; como a senhora, repito, é americana e tendemos a esperar que os americanos sejam gente de costumes diferentes, já me preparava para o momento constrangedor em que, sob a mesa, ela fizesse deslizar o seu pé descalço ao encontro do meu, quando, bruscamente, percebi o que lhe atraía a atenção. Uma mancha que tenho na testa. Uma espécie de sinal em que, por sinal, muitas pessoas têm reparado ultimamente.


A teoria de outra conviva é simples: a mancha sempre cá esteve! O cabelo é que já não vai estando. Por esse motivo, mais descoberta, a dita mancha nota-se agora bem.

Devo dizer que uma tal teoria, que atribui a uma calvície galopante o facto de se começar a notar tanto a mancha, não me agrada. Salva-me dela a cousin in law, sempre optimista:
«Não, não é de carreca! Tens que verr isso. I met a guy of your age, and he had a spot exactly like that one. And he died!»

Porque estas coisas não são para brincar (e não se deixem enganar pelo meu tom ligeiro), resolvi levar o aviso muito a sério. Não dormi duas noites e, ao terceiro dia, zarpei para o médico, um senhor de bibe branco que, imediatamente antes de à saída me pedirem que pagasse noventa euros, demorara comigo doze-minutos-doze, nem um mais, para me dizer, com um ar trocista:
«Oh, meu caro! Mas nem sequer é um sinal. [E chamou-lhe outro nome!]. Isso não tem importância. [Mais um pouco, e acrescentava: «Já experimentou lavar com água e sabão?!»]. Se quiser, pode tirar, mas unicamente por razões estéticas. [Por um triz não disse: «Basta puxar, a ver se arranca...»]»

Senti-me defraudado.
Foi como se, imaginem, ao entrar no gabinete do médico me tivesse acontecido tossir, e ele me dissesse: «Nem vale a pena sentar-se. O seu mal é tosse. Não se esqueça de pagar à saída...!»

Cá fora, chovia desalmadamente e eu, na escuridão, não sabia já onde diabo estacionara o carro.
Procurando-o, completamente ensopado, agasalhava-me melhor na gabardina, cruzando ambos os braços sobre o peito. («Cruzando ambos os braços» é uma judiciosa escolha de palavras, uma vez que não poderia ter cruzado um único braço).
Passei, nessa grotesca figura, por duas mulheres, uma das quais, a mais velha, explicava à outra, obviamente mais nova (acerca de mim):
«Desvia-te, Catarina, que esse é dos que abrem as gabardinas para mostrar o pirilau!»

Topo subitamente o carro, enfio-me no interior e arranco, espirrando!

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

VÍDEO-ÁRBITRO


Já, aqui, numa das crómicas iniciais, tive oportunidade de esclarecer quão pouco me diz o futebol e em que truques me especializei para não parecer um tolinho na matéria, ao pé de - bem!, no tempo corrente, ao pé de qualquer português, independentemente de género, idade ou estatuto. (Têm de ler essa crónica, é divertidíssima. A mim, pelo menos, faz-me rir bastante).

Mas se conseguisse pôr-me no lugar de um entusiasta, que não sou, diria que a graça do futebol reside numa certa imperfeição humana: que eu tenha motivos para me exaltar com os outros. Com uma claque rival capaz de tudo; com os jogadores do meu próprio time (suponho que o uso do termo "time", das duas uma: ou revela um grande conhecedor do assunto, ou então um imbecil), jogadores esses que andam a dormir; até com o treinador da minha equipa, a quem aceno poeticamente com um lenço branco. Mas os erros mais apreciados são os dos árbitros. Sobretudo pela sua ambiguidade: tenho reparado que não se vêem as decisões do árbitro da mesma maneira, consoante o lado em que a pessoa se situa, no estádio.

O que seria de um verdadeiro fã sem os erros do árbitro? Sem ter por que gritar? É quase ridículo um indivíduo de camisola, cachecol e boné com as cores da sua equipa, sem a possibilidade de berrar insultos ao árbitro.

Ora, pelo que entendo, é isso que vai suceder. Já não falo das interrupções - agora pára tudo, que tem de se comunicar com o vídeo-árbitro. Então? Foi golo? Foi falta? Foi mão? O fulano estava fora de jogo, que é, penso eu, a designação técnica  para um jogador que começa, em pleno campo, a tratar de assuntos alheios ao jogo, como cantar, falar ao telemóvel, fazer truques de prestidigitação? Esperas longas, gente que adormece. E depois, o rigor que se introduzirá. Geométrico. Matemático. Não vale a pena discutir. Qual a graça de um derbi nestas condições?

Se é para prescindir dos erros de um árbitro humano, falível, comprável, passível de insultos, mais vale ir-se até às últimas consequências: porem um semáforo, em vez de obrigarem um adulto em calções a sacar de um cartão amarelo ou de um cartão vermelho. Instalarem uma sirene, ao invés de se pôr o mesmo senhor a apitar. Não precisávamos de ir assistir aos jogos: sabíamos os resultados por uma aplicação do telemóvel. Sem zangas nem discussões. Sem enfartes. Nem qualquer prazer.

NETIQUETA

Sou discreto. Para preservar a sua identidade, designarei por Antonieta a minha amiga Eloísa.

Eloísa, perdão, Antonieta é uma das minhas melhores amigas. Está seguramente em terceiro lugar no criterioso ranking de melhores amigos por que me guio. Confio em que não se ofenderá com esta posição. Primeiramente, porque há tantas hipóteses de se reconhecer sob o nome que lhe inventei, como um toxicodependente, numa entrevista, com o rosto e a voz distorcidos. Mas, sobretudo, porque nunca lerá esta infeliz crónica.

Antonieta jogava, no Facebook, um sinistro jogo de vampiros. Seguindo os seus triunfos, não me abstinha de os comentar, chalaceando acerca da natureza ridícula do jogo e fazendo pouco dos nomes de guerra dos seus adversários. Parecia-me pacífico que achariam todos muita graça às minhas flechas de humor, que, obviamente, não tinham outra intenção.

Na verdade, o jogo era internacional. Antonieta lutava contra vampiros norte-americanos, irlandeses, suecos. Alguns, certamente, fanáticos e intolerantes. Minha amiga, ao contrário de sentir a diversão que eu lhe queria proporcionar, andava confrangida. Tinha vergonha de mim perante centenas de vampiros entusiastas. Decidiu bloquear o meu acesso à visualização do jogo.

Não percebi. Pareceu-me mal. Ofendi-me. Qual foi a minha resposta? Desamiguei-a.

Antonieta explicou-me, então, que o "desamigamento" é um gesto extremo e drástico. Vale como um insulto gravíssimo: um árbitro de futebol que enfrenta, a pé firme, as piores revelações acerca da sua mãe, por parte de um bando de energúmenos, ir-se-á, no entanto, abaixo se o desamigarem do Facebook. Foi a minha primeira lição de netiqueta.

Francamente, observando o uso que o vulgo faz da internet, tem-se alguma dificuldade em detectar qualquer código dos procedimentos aceitáveis. Ora vejam a Maria Vieira. Mas o vulgo não é só a Maria Vieira: há também aquele senhor que comenta as minhas publicações, escrevendo que ando a "exagerar nos cogumelos", signifique isso o que significar. Precisavam de uma terceira melhor amiga, também, que os esclarecesse sobre a netiqueta.

Gostaria de saber, caso não esteja a pedir de mais, se não poderei considerar um acto virtualmente anti-netiqueta, alguns amigos (tanto mais que agora sei que não deverei desamigá-los), estarem completamente à vontade para publicar as suas baboseiras no meu mural. Ou se é apenas uma irritante mania legítima.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A ORTOGRAFIA LUSÓFONA



Há momentos em que, só retrocedendo, um povo pode evoluir.

Os argumentos do desacordo em relação ao Acordo Ortográfico têm sido apresentados ao longo dos últimos anos. Não valeria, possivelmente, a pena sumariá-los. Desde a evidência de que nada justifica a ambição da uniformidade da escrita lusófona, até à de que o AO nem ao menos a concretizou (tendo criado, pelo contrário, mais ruidosas e risíveis divergências); desde a evidência de que a oralidade se tem ressentido desta nova maneira de escrever, ao originar confusões de pronúncia que não existiam, até à de que, por isso, assistimos ao espectáculo de toda uma geração que desaprende a dizer certas palavras; desde a evidência de que esta razia produziu absurdas homonomias, até à de que foram estabelecidas regras que se aplicam num caso, mas, sabe-se lá porquê, não em outro - enfim, não vos maço mais: as razões para a contestação são fundamentadas.

Pelo contrário, a favor do AO não tenho deparado senão com argumentos indigentes. Faz-se muito a analogia entre o contexto deste Acordo e o do anterior, para lembrar que, então, também houve Velhos do Restelo (como se isso fosse, por si só, uma resposta a qualquer dos argumentos invocados); ou fala-se da questão, associando-a a um combate travado entre o progresso e a reacção: como se o «novo», simplesmente pelo seu estatuto de novo, tivesse de ser o rosto do futuro; como se o «novo», por ser novo, significasse necessariamente progresso; como se o novo não pudesse ser estúpido; como se o novo não constituísse, por vezes, o pior dos retrocessos.    

Ou então fala-se das vantagens do AO para que o português de Portugal não seja, internacionalmente, ultrapassado pelo grande fluxo do português do Brasil. Responderia a esta objecção, recordando que a clivagem entre a escrita dos portugueses e a dos brasileiros se agravou ainda, caso um acesso de hilaridade me não obrigasse a parar por um momento a redacção desta crónica.

Olhando para o monumental desfasamento entre o punhadinho de raciocínios pífios para defender um Acordo construído no laboratório do Dr. Frankenstein e uma inteligente bateria de razões desacordistas, incontornáveis, pergunto-me, às vezes, por que diacho se não repensou ainda a situação, se não estudou uma digna marcha-atrás, se não reabre, ao menos, o debate. Claramente: este é um dos casos em que os argumentos não fazem a menor diferença. Não acredito que alguma demonstração demovesse o governo. Este ou outro. O que quer que o mantenha imóvel, impotente, teimoso ou distraído, nada tem que ver com a razão, as razões ou a ausência delas. Seja a vergonha de assumir a culpa, seja a insensibilidade ao valor da própria língua, seja algum outro inescrutável interesse. A sensatez dificilmente seria, aqui, reposta pela mão do poder.

Continuemos, pois, a fazer ouvir a consoante muda da nossa acção.




    O autor não escreve segundo as normas do Acordo Ortográfico

terça-feira, 1 de agosto de 2017

A FILOSOFIA ESTÁ NA MODA?


Ciclicamente, a Filosofia parece estar na moda.
Por mim, nunca sei se me hei-de congratular ou se devo desprezar esses subitâneos rompantes de fascínio, do senso-comum, pelo domínio que sempre teve, no senso-comum, o seu inimigo principal.

A Filosofia entranhou-se em mim pelos 13 anos. Ai, nunca vos contei essa descoberta que foi, simultaneamente, a descoberta de um imortal amor? Gosto muito da história em causa. É breve. Querem ouvi-la? Não? Mas posso contá-la na mesma. O ponto é que, na minha família, nunca existiram antecedentes filosóficos. Talvez meu avô, mas meu avô viajava pelo mundo e eu, enraizado em Moçambique, mal o conhecia. Através dos pais, nem pensar. Um irmão, 11 anos mais velho, era um jovem pouco interessante, como o são todos os jovens aos olhos de seus irmãos mais novos. (Embora, pensando melhor, ele fosse, frequentemente, o meu ídolo - como, afinal, todos os irmãos mais velhos). Nada no meu mundo, entre o Tintim, os circos, a praia, a bicicleta e uma escola preguiçosa, me acenava filosoficamente.

A «descoberta» deu-se quando tropecei num manual de Filosofia, pertencente, quase de certeza, ao idolatrado chato que era o meu irmão. Devo tê-lo furtado. Revejo-o na minha memória: capa dura, roxa ou violeta, com uma reprodução de O Pensador, de Rodin, e, lá dentro, capítulos de texto, texto, texto: nada de organogramas ou ilustrações. Mas os textos eram chamas. A sucinta apresentação da filosofia de cada um dos autores programados, talvez com excertos da sua obra, e uma crítica sistemática. Fixei-me em algumas citações, dessas que ecoam e reverberam: Descartes e o Penso, logo, existo, Sartre e o A existência precede a essência. Se percebia? Com certeza que não. Mas adivinhava o poder de concentrar uma visão numa fórmula, uma tese quase num paradoxal epigrama. Estava fisgado.

Tão fisgado, que principiei imediatamente a redigir a minha obra de Filosofia, incipiente mas esforçada. Intitulei-a As Tentativas. Dactilografava-a na Olivetti de minha mãe. Decidi que eu seria existencialista, porque a etiqueta continha uma sofisticação decisiva. E ainda me recordo de discussões vulgaríssimas, sem sumo algum, entre amigos, sobre raparigas, ou motos, ou professores,  em que não perdia a oportunidade de encaixar um poderoso «Não concordo, pá, é que, sabes, eu sou existencialista...»  

Está narrado este mito pessoal sobre a Filosofia como meu destino, que o mundo dos genes ou o da cultura não auguravam. Claro que, portanto, uma certa arrogância aristocrática, de que, em matéria de Filosofia, não consigo purificar-me por completo, me faz olhar para as modas filosóficas com algum desdém. Observo que é sempre a propósito de doenças psíquicas (a Filosofia como um novo método de cura), ou de males do planeta (a Filosofia como uma reconversão ecológica), ou de maus-tratos a animais (a Filosofia como uma reflexão sobre os Direitos de todas as espécies), ou da crise de espiritualidade (a Filosofia como uma proposta de meditação ou de religação à energia do cosmos), que estas modas proliferam. Ora, se tais correntes me parecem, em geral, bem intencionadas e promissoras, temo que subsista sempre um equívoco na forma como procuram apropriar-se da Filosofia. Não que daí venha mal ao mundo. A questão nem é que os múltiplos movimentos não se possam aproveitar dessa colagem. Insisto apenas na demarcação: dessa colagem não resulta qualquer específico benefício ou malefício para a Filosofia, ou para o autêntico conhecimento desta.

Apenas porque a Filosofia não é isso. Não, obviamente, porque me apeteça ditar o que ela deve ser; não, obviamente, porque se não possa transformar ao longo da história, abrindo portas a novas questões; mas porque faz parte do seu conceito a distância em relação ao efémero: ela é o pensar que se regula pela ideia do universal, e se recusa a tornar-se refém ou a esgotar-se no exclusivo recorte dos assuntos e dos interesses do nosso tempo. Não a reconhecemos (nem a conheceremos) na sua essência, pois, em nenhum dos meritórios avatares que tentam multiplicá-la.