quinta-feira, 17 de agosto de 2017

POMBOS, PRETOS E CIGANOS


Quando eu era garoto, deliciava-me com o pombal do Tio António. As suas pombas não tinham qualquer utilidade prática. Não eram pombos-correio, nem seriam objecto de venda; nada acrescentavam, de facto, ao prazer que meu tio fruía, todas as manhãs, antes de sair para o seu absorvente serviço, em conviver com as aves, lançando-lhes punhados de milho entre alegres crrru-crrru.

Portanto, sim, encantavam-me as suas pombas. Tanto, que certo dia, agarrei numa (o que, se bem me lembro, foi muito trabalhoso) e a levei para minha casa. Que desastre. Voava pela sala, repousando momentaneamente, da sua aflição, em pontos aonde não a alcançávamos e, é verdade, emporcalhando tudo em redor. Devolvemo-la ao seu mundo. Mas, por um momento, vibrou o meu sonho de fazer, de uma ave branca, lindíssima, um animal doméstico, que eu alimentaria carinhosamente e me pousaria no ombro ou no dedo.

Não foi certamente por me ter tornado mais sábio ou mais informado que passei a sentir-me incomodado com os pombos, a encarar o seu cocó sobre o tejadilho do meu carro como uma declaração de guerra, a enervar-me com o seu à-vontade entre os humanos, sem os temer nem lhes fugir: sem nada da proverbial timidez das suas antepassadas.

Durante anos, o melhor amigo de meu filho foi um jovem negro chamado Filipe. Natural e espontaneamente, davam-se como se nada os diferenciasse. Riam e brincavam juntos. Sentiam saudades um do outro. Meu filho é já, praticamente, um adulto. Não se tranformou entretanto num membro do KKK. Mas conversando com ele, percebo, amiúde, que não tem, hoje, amigos negros e que é capaz de pensar que estes trazem, para Portugal, problemas que dispensaríamos.

Minha filha sente um fascínio pelas jovens ciganas. Quando as vê em grupos, no Oeiras Parque, de grandes cabeleiras, ostensivos brincos e roupas brilhantes, com que a idade dela se identifica completamente, segue-as com um olhar de admiração e de inveja. Mas receio que, infelizmente, qualquer dia, na sua boca, a palavra "cigana" haja adquirido a mesma conotação que para a maioria dos portugueses. Quando, como? Que conjugação exacta de elementos conduzirá, inconscientemente, a essa transição?

Julgo que, em todos os casos, estamos perante um mecanismo muito semelhante, que é o da formação de um preconceito. Em algum tempo da evolução da humanidade, essa tendência para olhar o outro como uma ameaça, e para a diferença no meio de um espaço que demarcámos, como intrusão, há-de ter sido, com toda a certeza, de extrema utilidade para a sobrevivência do grupo. Mas toda a experiência me ensina que esse mecanismo não é activado senão pelo reforço dos nossos educadores. A percepção daqueles seres vai sendo influenciada e distorcida, à medida que vemos associar, sistematicamente, certos indivíduos a uma espécie de repelência.

Com o tempo, devém automática. Invade-nos. Está em nós. Fazemos prelecções contra o racismo, mas se a inteligência crê nas nossas palavras, um sentimento larvar de medo ou desprezo permanece.

É por isso que, para um idiota carismático, nunca é difícil despertar os nossos preconceitos e um racismo profundo.

Nunca me espantei que milhares de alemães percepcionassem os judeus como ratos, como sub-humanos. Espantou-me sempre muito mais que uns quantos resistissem ao condicionamento, à propaganda e à poderosíssima atracção do rebanho: participar da mediania, pensar, sentir e ver em grupo.

Porém, houve-os sempre. Gentios que apoiaram judeus, os protegeram e salvaram, correndo o risco da própria vida - sua e dos seus.

Tanto basta para nos fazer pensar.

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