quarta-feira, 9 de agosto de 2017

COMPLEXO DE PETER PAN


Lourenço Marques, Moçambique, anos 70, antes de 1974.

Um bando de adolescentes idiotas e atrevidos, de que eu orgulhosamente fazia parte - mais o Fipa, o Nelson, o Jorginho, o Murganho, o Zé Gordalho (estes últimos nomes, hoje, seriam obviamente vetados) e, infelizmente, nenhuma rapariga - criou um empreendimento único. As Produções Ponto. Frase promocional: "Somos Produções Ponto, e ponto final no assunto".

O que fazíamos era rádio. Não emitíamos para o "éter". Apenas para o bairro, através de dois altifalantes. Montámos um estúdio na garagem da casa onde eu vivia, recebendo electricidade do apartamento (num 10° andar), por meio de um longuíssimo cabo que descia, lá de cima, até ao nosso estúdio, como se fossemos praticar slide.

Influenciadíssimos pelo boom radiofónico daquele tempo moçambicano - havia os programas da Arco-íris Publicidade, os da Tantam Publicidade, os da Delta Publicidade e os das Produções Golo -, púnhamos discos a rodar, fazíamos entrevistas, contávamos histórias. Vínhamos das aulas e abríamos o estúdio. Trabalhávamos, pois, alegre e gratuitamente em rádio. Trabalhávamos, que é como quem diz, jogávamos a isso ou fazíamos de conta.

Lembro-me de que realizámos a cobertura de uma célebre prova de corta-mato. O meu irmão - sempre 11 anos mais velho do que eu - levava-nos no seu carocha, de onde nós, espremidos lá dentro, acompanhávamos os corredores, relatando as posições relativas, os incidentes, absorvendo os suspiros, os arfares, os seus passos sobre o solo, os sons, afinal, da corrida. Nada era emitido em directo. Gravávamos para passar mais tarde.

Ao cortar a meta, mal refeitos do cansaço, quase incapazes de respirar, muito menos de falar, os atletas tinham-nos à sua espera, de microfone em riste. E respondiam às nossas perguntas. Com toda a seriedade.

Aí é que está. Esta croniqueta não é, portanto, sobre a minha adolescência, senão lateralmente. É sobre a sensação de uma brincadeira nossa ser levada a sério. Um misto de responsabilidade inesperada e de culpabilidade, como se estivéssemos a cometer uma fraude: "Coitados. Estão a entrar no jogo como se fosse um assunto de Estado, dando um absurdo crédito ao que, bem visto, é apenas uma brincadeira de um bando de crianças."

Essa sensação acompanhou-me, depois, pelo resto da vida. Se pensar bem, no fundinho de qualquer um dos projectos a que me devotei, permanecia uma criança a brincar, ou melhor, um adulto infantilóide, que nunca se levou a sério. E que se surpreendeu, sempre, com o impulso e a aura de respeito e credibilidade que, a certa altura, esses projectos ganhavam.

Alguém, no processo, estava certamente equivocado. Suspeito que não era eu.

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