sábado, 5 de agosto de 2017

UM BRINDE AOS AMIGOS


Para uma crónica como a que tenho em mente, mais do que o humor de um Seinfeld, falta-me a ternura poética de um Manuel António Pina. Vou abalançar-me a um texto que me é imprescindível, sem as qualificações que desejaria. Tenham paciência.

Há quem diga, de mim, que não sou propriamente um habitante da amizade. Que me comporto mais como um turista. Um amigo platónico, por assim dizer. Alguém que não falha as jantaradas, mas não frequenta regularmente os outros. Que pode aceitar uma ida ao cinema, mas não telefona constantemente para matar saudade, para se aconselhar ou, simplesmente, actualizar os episódios da vida e ser posto ao corrente.

Pode ser que eu não tenha, de facto, esse espírito de iniciativa.
Alguns dizem-me: não há verdadeira amizade se não se pratica. A amizade é um exercício de todos os dias, ou nada.
Gostaria, porventura de mudar, mas não faço promessas. Discordo, porém, dessa ideia culpabilizante da amizade. Em Coimbra, que para mim é como se estivesse na Austrália, o J., que não vejo e com quem não converso há anos, continuará sendo uma pessoa fundamental na minha vida. O laço não se desvaneceu nem um poucochinho. Penso frequentemente no milagre de nos termos conhecido: as histórias mirambulantes que vivemos juntos não só farão para sempre parte do nosso imaginário e de uma espécie de memória mitológica, como, mais do que isso, sei que uma componente significativa da pessoa que eu sou se deve precisamente a essa experiência partilhada. E outra coisa: no momento em que nos revirmos, todo o património da nossa amizade estará imediatamente à disposição, como uma mesa posta diante de nós, um círculo de ideias, lembranças, afectos, gargalhadas, dores, ressentimentos, alegrias, tristezas, a confiança, o olhar, em suma, esta consanguinidade escolhida e adoptada.

No entanto, se discordo dessa culpabilidade, também não posso dizer que a mera certeza, em teoria, da amizade por cada um dos meus amigos, me seja bastante. Essa ideia, essa esperança de que "um dia estaremos juntos de novo". (Espero que não seja só no Reino de Deus). Preferia que a amizade fosse um enconto e o reencontro quotidianos. Numa vida que se desagrega, instável e demasiado curta (sempre demasiado curta, mesmo nos casos em que, pelos padrões humanos, se trate de uma longa vida), todos os momentos em que não estamos com os amigos, e poderíamos estar, constituem um roubo. É violento pensarmos nisso.

Não culpo "a vida", seria muito fácil. É verdade: "a vida", que se torna pesada e rotineira,  cerca-nos, entre solicitações e compromissos, e deposita-nos, ao fim do dia, como náufragos, na borda da cama. Mas mais uma razão: para que a nossa vida se não esgote na " vida", nesta "vida" acelerada em direcção a coisa nenhuma, há que praticar os amigos. Não sei bem como se inicia isso. Não sei.

Talvez escrevendo uma crónica para me lembrar de que há, aí, um trabalho.
Talvez pegando no telefone.

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