quinta-feira, 24 de agosto de 2017

DA FELICIDADE



Uma amiga - e sim, sei que estas crónicas vêm recheadas de alusões a amigas, mas, que querem? elas existem realmente e interferem nos meus dias - ofereceu-me, sem razão nenhuma, ou então para compensar, tardiamente, o esquecimento de alguma ocasião, um livro chamado Du Bonheur.

Esta «Viagem Filosófica», como promete o subtítulo, da autoria de Frédéric Lenoir, tem-me permitido revisitar os pontos cardeais da arcaica demanda de todos os homens. A felicidade. Eu creio na felicidade. Pode ser-me mais fácil acreditar na infelicidade do que na felicidade, mas não duvido de que esta também exista. Em muitos momentos, soube que a atingia. A consciência de uma harmonia perfeita entre mim e o universo. Momentos, dizia eu. Ou então, a noção que se tem, quando se reflecte sobre isso, de que, apesar de azares e contrariedades, se está de bem consigo e com a vida.

Lembrei-me de que, há uns anos, quando me dedicava a um blogue que era uma autêntica babilónia, o saudoso Kaostico, realizei um desafio curioso. Tendo nascido no distante ano de 1957, perguntava-me se seria capaz de encontrar 57 razões para sentir que era um homem feliz.

Refaço-me, hoje, o desafio. As razões terão, no geral, mudado. Algumas parecerão bizarras, outras pueris. Algumas incompreensíveis, outras insinceras. São as minhas 57 razões, nos dias que correm.

1-  Saber que ela me espera. Que a despeito da lonjura e das dificuldades, não é apenas uma ilusão ou uma amiga imaginária. Que nos reencontramos sempre. E sempre nos reencontraremos.
2-  Estar com a minha filha em casa. Espreitá-la enquanto espalha o seu estojo de maquilhagem e, diante do espelho, num sotaque brasileiro, vai dando conselhos e ensinando truques.
3-  Ter aderido ao Netflix, que enche de suspense os tempos mais solitários: The House of Cards, The Good Wife, Mad Men e Orange is the New Black.
4-  GoT: esperar semanal e ansiosamente pelo episódio seguinte. Saboreá-lo com dramática intensidade.
5-  Sempre e em toda a parte, os livros. Sopesá-los, cheirá-los, antecipá-los, comprá-los ou encomendá-los. O instante em que os meus olhos se prendem à primeira linha.
6-  O meu filho. Os tempos arduamente conquistados em que sabemos estar bem. Em que percebo tudo aquilo quanto em nós comunica na íntegra.
7-  Os meus amigos. De todos os quadrantes. Frequentemente distantes e negligenciados, mas aguardando a magia da presença. A própria festa da presença.
8-  Minha mãe, de 94 anos: a inteligência e o sentido de humor. As tardes com ela. Até as suas preocupações relativamente a mim, para ela sempre pálido e magrinho de mais.
9-  As viagens que não faço, ou não tenho feito, ou nunca mais fiz - mas que subsistem no horizonte. Um dia.
10- Os retumbantes regressos de meu primo. As histórias improváveis, as mais do que prováveis gargalhadas.
11- A independência, tantas vezes injustamente confundida com solidão. Ou, tantas vezes, tendo a solidão por preço.
12- A Banda Desenhada na minha vida. Tintim e Corto Maltese.
13- Proust, ainda e sempre. Os livros em geral, como já disse, e Proust em particular. Ter-me cruzado com a escrita que me apaixonou, o que poderia não ter sucedido. A bênção de Em Busca do Tempo Perdido.
14- A filosofia. Uma página de Kant.
15- Ter nascido em Lourenço Marques e haver vivido em Moçambique até aos meus 18 anos. Saber que não é o pretérito da vida, mas uma esfera de sensações e memórias que fizeram uma parte do que hoje sou, e nunca se diluirão.
16- Os meus óculos escuros e o meu relógio. Úteis, bons, bonitos. Olho-os e sinto um quase incompreensível prazer estético.
17- Ter-me tornado vegetariano. Levar-me a sério como vegetariano.
18- Os meus projectos, quem sabe se irrealizáveis, mas empolgantes. Uma editora. Uma revista digital.
19- Os meus romances. Estar, neste momento, a escrever um outro.
20- Os meus blogues: este, de crónicas, e o Profissão: Leitor, com experiências de leitura.
21- Viver em Carcavelos, próximo do oceano, depois de ter vivido uma separação dolorosa em Trajouce.
22- O cinema. Uma ida ao cinema com amigos.
23- Ser um professor de filosofia, numa escola em que a direcção é constituída por pessoas que me ouvem e se riem comigo.
24- Este computador novo, azul, secreto, ponto de partida de tantas viagens.
25- A música, também ultimamente arredada, mas sempre a um dedo de distância.
26- Pedro Mexia. Ricardo Araújo Pereira. Nuno Markl.
27- Ser português, com as inúmeras alegrias e todas as imperfeições de se ser português.
28- O futebol, não demasiadas vezes: algumas vezes, somente. E no seu melhor, não no seu pior.
29- O ateísmo. A liberdade e o pavor que me dá.
30- Comprar os ingredientes que, no meu Wok, me permitiram descobrir o acto, maravilhoso, de cozinhar.
31- Peter Sellers.
32- Sintra.
33- Francamente, o sexo. Mais do que sentir prazer, procurar (e achar) o seu prazer, com a dificuldade de um adolescente esforçado, mas inábil.
34- O debate. Quando possível, o uso do poder de discordar, argumentando convicta e convincentemente. O gosto de desmontar e contrapor razões.
35- A minha casa: minúscula, mas com uma cozinha ampla, defronte de um bosque com árvores de fruto, e a sala onde me sento a escrever. Como já antes enunciei: a minha casa é onde quer que me sente a escrever.
36- O meu joelho esquerdo, que me doía desde, provavelmente, os 30 anos, e cada vez mais, mas, depois de uma operação que adiara indefinidamente, retomou a sua actividade, simples, esquecível, perfeita.
37- E, por falar em joelho: o corpo. Não que seja o de um Adónis, mas porque emagreceu, responde eficientemente a todos os testes, a todos os exames, a todas as necessidades.
38- A mera existência da Biblioteca Municipal de Oeiras, onde me enterro em almofadões, no chão, folheando e escolhendo.
39- Meu irmão. Tão divergente, por vezes, de mim, tão em guerra, mas tão próximo quando mutuamente nos devolvemos.
40- O riso e o sentido de humor. O super-poder de criar gargalhadas. Contagiar.
41- Os cães. Não vivo com nenhum cão, mas vivi, em diversas fases, com magníficos companheiros, e a minha vida está cheia deles.
42- Paris. As memórias, e o encontro marcado. Para breve.
43- Um percurso matutino, no Inverno, pela marginal, antes do nascimento do trânsito.
44- A resolução de problemas. Quando algo parece dramático e, em algum momento, conseguimos que deixe de o ser.
45- A literatura policial. Os clássicos, Christie, Chandler, MacDonald, e os recentíssimos nórdicos.
46- Uma viagem de comboio, sentado, tranquilamente, à janela.
47- Uma viagem de eléctrico, entre uma algazarra de línguas estrangeiras.
48- Uma viagem de avião. A própria espera, o seguir no bus pela pista, sentar-me. Até o tempo da refeição, de que se diz tanto mal e me faz sentir em transe.
49- Jornais e revistas em múltiplas línguas: brasileiros, ingleses, espanhóis, norte-americanos, italianos.
50- O dia secreto (há sempre um) em que me perco de mundo, e ninguém sabe de mim, e nada sei de quase ninguém.
51- Comprar roupa, o que nem ocorre com a excessiva frequência do típico consumista. Mas fazê-lo porque gosto, não apenas por necessidade.
52- Usar lentes de contacto. Melhor seria ver bem: mas, para um sujeito que, até aos vinte e muitos anos, esteve prisioneiro de uns óculos graduadíssimos, é inimaginável a libertação proporcionada por umas lentes de contacto.
53- As ideias fixas que periodicamente cultivo: agora, uma lambreta, uma boa máquina fotográfica.
54- Uma pasta com folhas, lápis, borracha, régua, canetas de tinta-da-china. A ideia de tornar ao desenho.
55- A poesia. A descoberta de um poema. O arrepio da beleza. Ruy Belo. Herberto Hélder.
56- A inesgotável curiosidade. O abençoado espanto. O poder de me maravilhar.
57 - Ser-me. Neste preciso ponto da minha vida, que não trocaria por nenhum outro.

Pela paciência com que me seguiram, provavelmente discordando e surpreendendo-se devido à fragilidade de algumas entradas, muito, muito, muito grato.

Sem comentários:

Enviar um comentário