terça-feira, 15 de agosto de 2017

COMO GASTAR SEM CULPABILIDADE


Nos países ricos, particularmente nos EUA, existe uma geração de jovens muito bem sucedidos que sentem uma culpa agreste por se terem dado tão bem na vida, num mundo assolado pela miséria. Compreendo-os perfeitamente: passaram os anos felizes combatendo o "sistema", mas o sistema recompensou-os. Aproveitou, caros, a sua inteligência, a sua criatividade, o seu talento e o seu trabalho. Tinham boas ideias, e o tal de sistema, que pode ser infame, mas não é parvo, comprou-as e enriqueceu-os. De modo que esses milionários precoces atenuam, hoje, o sentimento de culpa, adoptando crianças do 3° mundo, investindo em projectos de beneficiência, apoiando todos os rios de luta contra a pobreza e o sofrimento.

Longe de mim querer comparar-me com eles. Não sou um jovem bem-sucedido, embora tenha noção de que me faltariam, para isso, apenas dois requisitos: ser jovem; e bem-sucedido. Porém, é-me familiar essa angústia perante o próprio dinheiro. Tendo sido educado religiosamente, naquela inflexível recusa dos bens temporais, e tendo, mais tarde, sido reeducado por uma cultura de esquerda, que mantinha, paradoxalmente, o mesmo desprezo em relação às " cenas materiais", habituei-me à ideia de que, quando gasto, comigo ou com os meus, em " luxos", estou, de certa forma, a roubar a alguém.

Precisei de tempo para desmontar a hipocrisia subjacente. Para reconhecer que o meu salário não é o pagamento de um crime contra os pobres, como se eu fosse um banqueiro ou um assassino contratado. É a retribuição do meu trabalho, aliás insuficientemente reconhecido e, por isso, mal pago. Posso (devo) sentir-me incomodado por usufruir de oportunidades, ou condições, ou mesmo benefícios, com que uma vasta maioria nem sonha. E sempre foi importante que esse aguilhão me picasse a consciência e me levasse a intervir social e politicamente. Mas trata-se, em última análise, sempre de uma escolha. Uma decisão ética. Não uma dívida.

Por isso mesmo, aprendi a sentir que mereço o que consigo comprar. Enumerava, no outro dia, diante de amigos, os meus últimos desejos. Chamem-lhes caprichos: uma lambreta e uma boa máquina fotográfica. Nunca resistirei a livros nem a viagens, que dão sentido à minha vida e uma figura à minha felicidade. Cinema, teatro, música. Netflix, já agora.

Claro que a realização de gostos dispendiosos me torna um privilegiado no interior de um sistema que produz sem-abrigo e desempregados. E o facto de pagar conscienciosamente os meus impostos é insuficiente para que a minha consciência adormeça. Recuso-me, pois, a tornar-me um zombie. Tanto no que respeita a tudo aquilo em que posso tocar para contribuir para a mudança, como em tudo aquilo em que posso tocar porque me dá prazer.

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