segunda-feira, 21 de agosto de 2017

PALAVRA DA SALVAÇÃO



     No regresso de uma viagem que tenho de fazer todos os fins-de-semana, à noite, sozinho e cansado, pela ponte sobre o Tejo, de pálpebras colando-se-me, a única companhia que me resta é, imaginem, a da rádio. Vou fazer uma confissão: entre as estações e os programas que se me oferecem ao mexer de um dedo - desde os que despejam anúncios a uma dieta miraculosa, concebida de acordo com o seu ADN, ou anúncios ao Novo Banco (Deus me guarde!), até aos que me encantam com a música do excelso Bach, que, naquela situação, me adormeceria de imediato; desde os que usam a voz repousante de um locutor para me acompanhar, o que é pouco recomendável, até aos que me espevitam com rock, que me desgastaria os nervos fatigados - o que realmente prefiro, o que me desperta mesmo, é qualquer uma das estações em que, àquela hora, consiga seguir a actuação de uma seita.

Os pastores brasileiros, neste particular, são do melhor que há. O seu espectáculo entretém garantidamente. Sem o menor vestígio de vergonha. E não me refiro a vergonha por enganarem e extorquirem, isto é, pela manipulação da credulidade. Falo apenas da vergonha imediata pela figura, pelo excesso, pelas vozes, pelos gritos. Em pouco tempo, caio nas profundezas do inferno, reconheço o jogo de Satã e dos seus apaniguados, percebo a movimentação das hostes do Mal, tentando cercar-me e consumir-me, e escapo às costas de um bispo, que me protege e me conduz em direcção à Luz.

O momento de ouro do show radica na sucessão de entrevistas a pessoas humildes, que vêm prestar o seu testemunho. Excitadíssimo, um pregador ouve uma cabo-verdiana contar, numa pronúncia imperceptível, como sua filha entrara para o escalão dos campeões, logo após a cerimónia em que a mãe a entregara à Luz. «Quer dizer que ela agora é uma campeã?», certifica-se o pregador. «Sim, Pastor.» «Quer dizer que ela entrou, com dezassete anos, para o grupo de atletas com vinte anos?» «Sim, Pastor.» (Não me lembro de a ter ouvido referir estas idades suspeitas, mas com certeza que o homem não iria inventar dados tão específicos.)

Ou outra mãe. Esta, de um filho «rebelde», que «comprava briga» continuamente, e não queria de modo algum que ela lhe limpasse o quarto. Só para terem uma ideia: de uma vez, até, em que a mãe o fizera em segredo, o rebelde, deparando com o facto consumado, urrou de fúria e partiu tudo, cadeiras e «camas» (teria mais do que uma?).
Pois no próprio dia em que a mãe o consagrou à Luz, o jovem tomou a inesperada iniciativa de lhe dizer: «Mãe, anda arrumar-me o quarto, que isto realmente já chegou a um ponto em que se não pode lá estar».
A mim, como qualidade de milagre, ter-me-ia entusiasmado mais que o moço lhe dissesse: «Mãe, nunca mais te preocupes com o raio do quarto, que, daqui em diante, cuidarei eu mesmo desta nojeira». Porém, para o Pastor, parecia já suficiente prova da mão de Deus um rebelde, que «partia as camas, e tudo» à simples menção de lhe arrumarem o quarto, ordenar, um dia, à progenitora que o fizesse. Aleluia!

Não pensem que faço pouco. Na verdade, é um teatro empolgante, mas que me deixa amargurado. Se a fé pode exibir-se como uma opereta que mantém acordado durante uma solitária viagem, por outro lado apavora-me. Estas pessoas que se põem cegamente nas mãos que lhes prometem curas e prosperidade são pessoas esmagadas pela vida, sem dinheiro nem sentido, sem paz nem futuro. Guia-as a mesma centelha de irracionalidade que arrasta, outras, a gastar religiosamente, todas as semanas, no Euromilhões, ou numa infindável série de sessões de psicanálise. Mudam os deuses, mas o mecanismo que permite crer numa solução súbita e mítica para todos os problemas, isto é, num milagre, está presente em todos.

Às vezes, deixa um sujeito submerso vir à tona, respirar e subsistir. Mas quase sempre degrada. Em última análise, paga uma vida faustosa aos pregadores. Para estes é que se terá operado o autêntico milagre. Aleluia!            

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