domingo, 27 de outubro de 2019

FENOMENOLOGIA DA ADESÃO AO QUE NOS PERTURBOU




O longo e filosófico título tem um propósito: o de sugerir a revisitação honesta de um processo em que, desde o momento em que fomos confrontados com o estranho (aquilo que nos desassossega e questiona hábitos), até aqueloutro momento em que lhe compreendemos o sentido, de facto nos expandimos e mudámos. Não trouxemos o novo para o interior dos quadros pré-existentes; revolucionámo-los, de modo a alcançar essa novidade que neles não cabia.

Porque quando vi as fotos do Assessor em saias, o meu primeiro movimento foi de repúdio e recuo. A inteligência mobilizou-se de imediato para justificar racionalmente essa não-aceitação. Não era difícil. As redes facultaram-me prontamente inúmeros exemplos de gente de esquerda, ideologicamente madura e bem-pensante, que não hesitou em explicar que aquilo era de mais. Erro estratégico, aventavam os mais tímidos. Uma provocação que afugenta pessoas, acrescentavam outros. Exibicionismo desnecessário; dramatização do radicalismo. Que o Parlamento não é um teatro. Que defendemos as minorias, com ideias e argumentos, não com um número de ópera, se não de circo. Ou de passerelle. Em resumo: folcloricamente. Por fim, que a figura fazia lembrar uma freira, ou que só lhe faltava a burka para a vermos como um exemplo de opressão no trajar, nunca de uma libertação.

Certo. O último constitui o argumento mais forçado, porventura a raiar a idiotice. Em todo o caso, tantos ensaios no fundamentar de primeiras impressões e uma divisão tão profunda adentro de um universo de pessoas que se intitulam, e em geral serão, revolucionárias ou, pelo menos, não-conservadoras, exigiram, de mim, pôr-me a pensar. A rever ideias. A considerar, com toda a seriedade, posições que se espadachinavam entre si.
Dois pontos cartesianamente firmes em que assentei o método da minha averiguação consistiram, um, em que o repúdio inicial  de muitos dos detractores provém da perturbação por aquilo que se estranha, precisamente como sucedera comigo. Sim, não terá sido realmente por se achar Kitsch (também o disseram), ou presunçoso, que se criticou tanto. De resto, usam-se, no Parlamento, gravatas Kitsch e presunçosas, de muitas maneiras, e não se fala delas. Estão dentro da normalidade. Diria, portanto, que esse juízo de gosto advém mais tarde, já como racionalização de um desagrado imediato.
Tomem nota de que escrevi «o repúdio inicial de muitos (dos que repudiaram)», em vez de «todos (os que repudiaram)», para não incorrer numa generalização abusiva. Mas certamente muitos, mesmo tratando-se de pessoas de esquerda, respondiam a um impulso conservador básico, ao incómodo perante o invulgar que percepcionavam. Aliás, a percepção não é, aqui, indiferente. Com as ideias, parece tudo mais fácil. No abstracto, revemo-nos na dignidade e na beleza de confrontar os usos. Não custa, por exemplo, ser-se anti-racista em teoria. Complicado, infelizmente, é manter, por vezes, a coerência, quando estamos perante o negro ou o cigano concretos (e o mesmo, mutatis mutandis, para o gay, a lésbica, o transsexual), aqui ao pé de nós, vistos e ouvidos quando fazem frente e refilam, ou assumem radicalmente diferenças e direitos. Surdamente, quantas vezes, o racismo que ultrapassáramos no mundo inteligível, faz uma discreta reaparição pela porta dos fundos.

O outro ponto tem que ver precisamente com a minha resposta à ideia de que um homem vestindo saias, como se fosse uma obrigação ideológica, aproxima mais esse gesto da opressão, ou da auto-opressão, do que de uma libertação.

Que resposta? Acerca deste último ponto, revirando-o em todas as suas faces, não vejo como se pode concluir outra coisa que não, e deixem-me sintetizar categoricamente: vestirmos o que quisermos (e não acredito que, neste caso, alguém tenha sido forçado), Kitsch, vaidoso, presunçoso ou não, sejam quais forem as causas, ou Causas, e por maioria de razão quando se rompe com os hábitos mais enraizados e com o socialmente aceite, contém, como motor, uma decisão livre. Sobre isso, ponto final.

Admitindo esta conclusão, grande parte dos argumentos que contestam o vestuário do senhor devêm irrisórios. Foi aquilo uma provocação? Pode ter sido. Mas uma provocação assumida como um gesto de liberdade, em nome do direito de me vestir excentricamente, faz todo o sentido. Um erro estratégico? Um afastamento de pessoas, em vez de um convite a que se juntem às ideias e à luta do partido? A divisão, ao invés da união, coisa típica da extrema-esquerda ou da esquerda caviar e dos trotskismos? Talvez sim, talvez não. No fundo, que importa? Nem sempre a posição radical em que se crê, deve ser sacrificada à estratégia. Para já, teve o mérito de pôr a esquerda a pensar em questões que fogem aos programas, a discuti-las sem rede, a questionar-se e a afinar argumentos. Não é isso uma mudança? Não é isso, desde logo, a mudança de nos obrigar a pensar e a formular um juízo acerca de uma mudança?

«Ah, e tal, mas trata-se de uma distracção.»
Perante o que o Livre impõe à discussão pública (para já, a gaguez de Joacine ou a saia do Assessor), abdicaríamos ou esquecer-nos-íamos - assim reza uma crítica mais - de discutir o politicamente central, para nos dispersarmos e desperdiçarmos por miudezas. Mas, ainda uma vez, não posso concordar: a gaguez de uma Deputada ou a saia de um Assessor do sexo masculino são questões marcantes e maiores relativamente à natureza e aos limites do que entendemos por inclusão. São questões maiores relativamente ao modo como consideramos o peso dos costumes e, portanto, com implicações éticas, ergo, é claro, políticas.

Uma derradeira observação, de lateral importância no caso: descobrindo, entretanto, várias fotografias de homens contemporâneos em saia, e deixando que a estranheza paulatinamente se entranhe, até o horror estético se transmuta numa adesão tranquila. Ficam bem? Há uns que sim. Vários têm, sem dúvida, muitíssimo estilo. Capto perfeitamente a beleza de uma configuração possível, de uma forma nova. E tudo são formas que podemos escolher, libertando o nosso gosto e assumindo direitos que nem percebo em nome de que seriam negados.