sexta-feira, 6 de outubro de 2017

LER, TER LIDO, RELER


Para um leitor obsessivo, como eu próprio, poucos prazeres se equiparam ao de estar em plena navegação por um livro sobre que tínhamos estimulantes expectativas. Desde as primeiras linhas, quando Autor e livro se encontram ainda em estado de Graça, sentimos que penetrámos, não apenas no mundo ficcional em que habitam aquelas personagens, mas no âmago do nosso interesse, como se, ler, fosse o rosto e fosse o corpo desse interesse; como se a história que nos vamos contando a nós mesmos, página após página, fosse a realização de um desejo, mas uma realização que o não suprime, o não extingue, antes o mantém ao mesmo tempo que o sacia, na encantadora vibração contínua do acto de ler.

Por vezes, ao longo da leitura, desaceleramos: uma passagem entediante, um capítulo que não está à altura, ou que não consegue captar-nos. Ou pensamentos parasitas, que nos distraem. Pode acontecer desiludirmo-nos. Como se, afinal, o livro não fosse o que esperávamos, e, então, o desejo extingue-se, efectivamente.

Daí que "termos lido" um livro nos traga um outro tipo de prazer. A visão do todo. O romance apreendido na sua unidade. E, realmente, só depois de termos lido um romance até ao fim, poderemos ajuizar do seu valor. Com A Ciociara sucedeu assim: uma leitura que partiu numa volúpia. Capítulos que devorei numa alegria de leitor. E, a partir de certo ponto, a perda do prazer, uma habituação sem mais surpresas. Num comentário que principiei a escrever nesse momento, queixava-me de um declinar de intensidade. Preparava-me para catalogar o romance como uma decepção.

Porém, nos últimos 3, 4 capítulos, a obra reanima-se. E um incidente trágico contagia e toma conta das protagonistas, da história, do leitor. Chegamos ao fim esgotados da tensão psicológica, inconsoláveis por tudo quanto experimentámos por interposta pessoa. Na visão da obra como um todo, já não pesam os momentos de menos interesse: reavaliamo-los inconscientemente; foram necessários como vias pacientes para a preparação de um certo desfecho. A Ciociara é um grande livro de que, a meio, quase desisti. E que, como obra, classificaria, depois de lida na íntegra, como sublime. Dura e sublime.

Um terceiro tipo de prazer é o da releitura. O que se perde em inocência e descoberta, o que lhe falta em surpresa, é compensado pelo olhar advertido, sábio. É uma leitura que nos oferece o gosto do reconhecimento e da familiaridade. "Sim, cá estás tu." Nos melhores casos, oferece também a possibilidade da descoberta de pormenores e até de uma compreensão que discorda da anterior.

Tenho alguma dificuldade em reler. Mas todas as releituras que fiz introduziam um elemento inesperado, uma chave que me escapara, um ponto de vista acrescentado e aprofundador.

São três prazeres que não se dispensam mutuamente. Ler. Ter lido. Reler.

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