segunda-feira, 9 de julho de 2018

MÁRIO SOARES



Vou evitar pronunciar-me acerca do homem concreto, apesar do título desta crónica, porque, ao contrário do que se tem ouvido, não me parece que seja verdadeiramente a pessoa que está em causa quando se discute se os seus restos mortais deverão ter honras de Panteão Nacional, apenas dois anos volvidos sobre o falecimento. [Até agora, deveria mediar o tempo de 20 anos].

O seu lugar na História do regime, como fundador da actual democracia, é inequívoco. Não se segue, daí, o apregoado «consenso» sobre a figura, ou a aprovação dela e a admiração por ela em que  todos os portugueses seriam unânimes. Aliás, estou ansioso por conhecer as posições do PCP e do BE, que antecipo que possam reflectir precisamente essa falta de consenso. Mas o problema não se reduz a isso. A proposta não tem que ver com o mérito do dr. Mário Soares. Revela outra coisa, quaisquer que sejam os pretextos e a retórica disparados: revela a necessidade de, simbolicamente, a "classe" política se reconhecer e se validar. O que significa é que, sob a aparência de uma dignificação da pessoa, por causa do que terão sido os seus feitos extraordinários como estadista, se quer honrar o próprio regime. São os eternos partidos ao centro, PS-PSD, que se adiantam para assumir a herança; são os Calha, os Bota, os Belém, os César, os Zorrinho e os Negrão desta vida, que, como de costume, se preparam para votar, em causa própria, uma lei que distingue os políticos dos restantes cidadãos. Porque agraciar o dr. Soares implica essa alteração legislativa que, para não ser precisamente um carapuço que sirva a uma cabeça única, acaba por abranger todos os estadistas. Não os escritores, professores ou bombeiros, não os futebolistas, militares ou actores, não os caça-vampiros, críticos ou cineastas, ou médicos, ou engenheiros, ou ciclistas, portugueses, de valor excepcional. Esses terão de continuar a esperar 20 anos (como é normal a fim de que haja distanciamento), para poderem entrar no clube. Apenas os estadistas.

Em rigor, percebemos que a nova lei, se a aprovarem, não implica que os tais estadistas, os "ilustres estadistas" (tenho vontade de reler Lisboa em Camisa) terão direito à entrada no Panteão, automaticamente, e em bloco, ao fim de 2 anos da morte. Melhor fora, caramba! Abre-se-lhes essa possibilidade, tendo sido portugueses fora de série. Ainda assim, porquê? É um gesto, repito, que os políticos profissionais (os mesmos que, sempre em nome da dignidade da carreira política em Portugal, decidem dos seus ordenados e dos extras, ou das condições da sua reforma), ousam, porque entendem que o país inteiro se deve vergar ao seu valor e ao valor do regime, na forma dessa trasladação imediata, que a lei não previa, do sr. dr. Mário Soares, para o Panteão Nacional.

Afirmava um comentador, com quem, de resto, discordo amiúde, que a Assembleia mostra, assim, o seu amadorismo. Espero que o seja. Porque se não se tratar de ingenuidade e amadorismo, só pode ser prepotência.

1 comentário:

  1. Concordo com a prepotência acrescida de algo algo ainda mais negro do que negrão.Os nomes associados a isto fazem-me lembrar o assombroso Fernando Grade e o seu poema com os nomes da malta dos escritórios.

    ResponderEliminar