terça-feira, 3 de julho de 2018

DO HUMOR E DO PRECONCEITO


Uma razão acrescida para eu apreciar Ricardo Araújo Pereira, como se não lhe bastasse ser inteligente, ter muita piada, uma cultura vasta e variegada e uma excelente capacidade de utilização da nossa língua, falada ou escrita, é o facto de esvaziar a ideia comum de que se não pode fazer rir sem se se ceder ao racismo, à misoginia, à xenofobia, à homofobia ou aos diversos rostos fóbicos em que o preconceito se multiplica.

Há tempo, num dize-tu direi-eu facebookiano, alguém se referia, em termos agrestes e com intenção jocosa, à «paneleirice» do Cristiano Ronaldo. Ou "rabichice", ou "bichice", o que, enfim, vai dar ao mesmo. Como me atrevesse a retorquir que, num jovem como ele, essa questão devia ser o que menos importava, ganhei imediatamente o rótulo de puritano. O meu comentário incomodou, como é evidente, ou não haveria necessidade de me integrarem tão ostensivamente no rol dos pavorosos defensores do politicamente correcto, essa gente enfezada e irritadiça, incapaz de pôr um pé em ramo verde, gozar uma boa gargalhada ou um bom charuto, uma pinga, alimentos gordos ou uma piada racista. E, claro, a tese acerca do que eu não conseguia compreender, subjacente ao acto de me rotularem, era a de que se pode dar largas ao humor preconceituoso sem, contudo, se ser uma pessoa preconceituosa. Rir de anedotas de alentejanos sem que isso signifique depreciar efectivamente os alentejanos, de quem, na verdade, se seria até muito amigo, ou de graças sobre mulheres, pretos ou paneleiros, não tendo, no fundo e na prática, o menor vestígio de uma atitude discriminatório. Criar-se-ia, portanto, um mundo à parte: quando se trata de reinar, ou seja, de fazer rir (era assim que a coisa funcionaria), vale tudo, e nada realmente pode ser levado a sério. Ou a mal.

Vou surpreender-vos. Em teoria, concordo com a tese. O gozo de uma piada racista não identifica um racista, e por aí fora. Porém, como em tudo, há que não descansar sobre a ideia. Na prática, nós sabemos discernir. Não existem regras absolutas na matéria, mas, que diabo! claro que alguns ditos, alguns comentários, algumas formas de fazer humor, são reveladores. O facto de ter muitos amigos pretos ou homossexuais não me salva. E diria, sobretudo, que usar o facebook, esse autêntico albergue espanhol, esse lugar de todos os equívocos e todas as interpretações, como meio onde propago e propagandeio afirmações em que, depois, não quero que reconheçam a minha identidade ideológica, parece, no mínimo, uma escolha desastrada.

Não pretendo um mundo sem sentido de humor, ou de humor desinfectado e aparado, com censores e vigilantes em todas as esquinas. Nada tem sido tão nocivo para o cultivar do que quer que seja complexo e profundo, como a aridez unidimensional do politicamente correcto. Ainda assim, não pactuo com estas duas ideias absurdas como conclusão das premissas que enunciei: que o preconceito é a única veia da graça; e de que, tratando-se de ter piada, vale tudo, seja qual for o momento, e sejam o lugar e o meio quais forem.

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