terça-feira, 12 de setembro de 2017

SHRINKS

 

   "Metade é ciência e a outra metade é fé."
                                       Novalis


Não poderia negar que uma grande parte, mais de 50%, do que se pesquisa e afirma no campo da psicologia, seja, para resumir numa palavra, científico. Conheço várias pessoas que, acompanhadas por psicólogos especializados em diversas variantes e tipos de abordagem, foram efectivamente tranquilizadas; sustidas nas suas crises; nos seus medos; transformadas no que respeita a comportamentos desequilibrados; reintegradas na família; na comunidade; na existência. Testemunhei razoáveis índices de casos de eficácia, mais demorados uns, mais discutíveis outros, para que, apesar de tudo, não reconheça alguma credibilidade à psicologia. Embora, claro, me aflijam os psicólogos que sobremedicam. Os que encharcam em medicação. Os que mantêm pela trela. Os que alienam. Os que zombificam.

O senso-comum norte-americano, como é sabido, trata os psiquiatras, num misto de desprezo e receio, por «shrinks», ou seja,  «redutores» - ligando caricaturalmente a sua função à dos redutores de cabeça. Compreendo esse sentimento de suspeição. Nos EUA, precisamente, a psicologia apresenta-se como um assustador teatro de lutas internas, chocantes assassinatos do pai, ruidosas excomunhões e denúncias mútuas de fraude. Revela-me e narra-me um livro (por acaso muito interessante, mas extremamente parcial, e cujo título original é nada menos do que Shrinks - The Untold Story of Psychiatry), a história recalcada da omnipresença dos psicanalistas na América e do papel, segundo o autor, muito pernicioso que a sua influência teve na marcha da psiquiatria.

Mas essa história é também a história das sucessivas versões da Bíblia da psiquiatria, Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders, o «fidedigno compêndio», define-o Jeffrey Lieberman, «de todas as doenças mentais conhecidas». Ora, percebermos até que ponto o registo e a caracterização de muitas doenças mentais nesse compêndio, mais do que o resultado de pesquisa e experimentação científicas, foi o consenso de exaustivas negociações e jogos de poder entre correntes em choque, sob o escrutínio atento das esferas do politicamente correcto, abala certamente a confiança de qualquer potencial paciente.  

Houve sempre nessa luta para que se aceitassem ou recusassem determinadas descrições como evidências de "desordem mental", qualquer coisa de pouco sério e de pouco científico, associada a interpretações e dependente da conveniência em manter certas categorias de "doentes". O que é exactamente uma "neurose", por exemplo? Uma desordem ambígua, vagamente diagnosticável? Uma ficção? O certo é que os psicanalistas perceberam que seria mau para o seu negócio excluir essa identificação. Sem neuróticos, quem teriam para tratar? E a homossexualidade, deveria ser registada como uma perturbação? Quantos argumentos, e preconceitos, em torno dessa pergunta.

Depois, temos, por exemplo os psicopatas. O que é um psicopata para além do que vemos nos blockbusters? Como o reconhecemos? E, se o identificamos, podemos curá-lo? Ou estamos a falar de alguém com um cérebro de tipo diferente e, portanto, liminarmente incurável? Seja como for, pesquisem por uma lista designada por "teste Hare" para reconhecer um psicopata. Que vago. Que ambíguo. Como nos poderíamos todos, de um modo ou de outro, reconhecer aí.

Como se todas estas dúvidas não bastassem, tropeçamos quotidianamente numa sub-categoria da fauna, que é o "psicólogo português". Ouvimos os disparates do Dr. Quintino, na rádio, na tv e em cassete, ou pelo menos em livro, ou daquele senhor de voz mansa, com truques para tudo, o Dr. Sá, ou as certezas do Dr. Strecht, e mesmo as do Dr. Daniel Sampaio, esse guru, esse Mestre Yoda da Arte, e metemos a marcha-atrás.

Entre nós, cada vez mais, parece que todos poderíamos ser políticos, treinadores e psicólogos. Não sei. Mas olhando em volta, desconfio que sim.

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