quinta-feira, 14 de setembro de 2017

SALVADOR


Quando ouvi pela primeira vez a canção do Salvador, muito antes da sua feliz vitória no Eurofestival, desagradou-me de imediato. Ao contrário de tantas pessoas, que se renderam sem luta, eu combati intensamente. Aquilo tinha ar de se arrastar como uma jibóia digerindo um boi. Era demasiado Maria Guinot para meu gosto. Nem a voz do Salvador me parecia ter salvação.

À força de a escutar, porém, comecei a intuir com algum prazer a melodia sob as camisolas que a sufocavam nas lentidões de orquestra sinfónica da Emissora Nacional. Não o confessei logo. Sentia-me bem no lugar de um tipo que, contra a generalização do apoio, continuava a dizer mal. Amigas minhas, que a ouviam quase em êxtase, eram, a seguir, varadas pelo fio do meu sarcasmo.

E apesar de tudo, na noite do Eurofestival, sofri todos os minutos numa esperança que, incrédula, ia ganhando força. O Salvador soou-me, e isto é absolutamente verídico e não um mito tardio, em contraste com as canções concorrentes, de uma beleza e de uma qualidade inigualáveis. Como mais um desses portugueses de gerações que se habituaram a ser torturadas pela eurovisão como sinónimo de uma humilhante derrota, dei conta dos resultados de lágrimas nos olhos.

Fui honesto. No que escrevi de seguida, dava os parabéns ao Salvador, sublinhando sempre que vencia com uma canção de que eu nunca fora fã.

 Com o tempo, aprendi a apreciá-lo na sua qualidade de ser humano interessante e completo, culto, sensível e generoso, com uma voz capaz de voos maravilhosos e uma coragem que vai sendo rara. Vi isso, como vi a ponta de arrogância que estava a mais, ou os actos intempestivos de um humor que às vezes é mais rápido do que a própria sombra e, certamente, mais rápido do que a inteligência ou um certo sentido das conveniências. São defeitos menores. Somos todos como ele. Ou tomáramos nós.

Neste momento complicado da sua vida, em que a imprensa, como escrevia uma amiga sua, rompe, com títulos infames, o seu direito à privacidade e ao sossego, quero desejar-lhe (salvo que ele não lerá uma crónica discreta e perdida como esta) que encontre um coração à altura do seu coração. E que o já do seu até ao público seja um já muito breve.

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