domingo, 17 de setembro de 2017

TAUROMAQUIA


Desculpem autocitar-me, mas vem a propósito.
Numa página de veganos e vegetarianos, alguém reproduziu um artigo em que um idiota, não há tolerância que me faça atenuar o adjectivo, visava provar cientificamente que os touros não sentem dor, porque segregam uma hormona que, e blá-blá-blá. Os frequentadores da página reagiram com indignação. Num dos vários comentários, uma senhora escreveu: "Qualquer dia a ciência consegue provar que esta besta não tem cérebro." Alguma coisa no género. E eu então, inspiradíssimo: "Mas pelo menos, nesse caso, seria verdade. Eu não gosto de insultar, porém está cientificamente provado que os broncos não sentem os insultos, porque segregam uma hormona que os auto-anestesia e faz que nem compreendam de que se trata."

Este uso da linguagem científica em nome dos interesses egoístas tem qualquer coisa de aterrador. Seria muito fácil "provar" cientificamente que as raposas têm uma hormona desportiva que as faz apreciar vivamente serem perseguidas por matilhas de cães e homens de cartola ou bonezinho e jaqueta vermelha, a cavalo, ao som de uma trompa, ou que diabo é aquilo. Ou que, na gazela que recebe um tiro, dispara a adrenalina que a leva a sentir a morte como um orgasmo. Tanto faz!

Ainda que fosse verdade, e não é, valeria tanto como defender-se que certos seres humanos (por exemplo os halterofilistas) são imunes à dor, pelo que seria aceitável um espectáculo em que lhes espetassem bandarilhas. O que está em causa é a barbaridade de se atirar com um animal para uma arena onde, entre bravos e olés de bandos de sádicos, o vão acossar, provocar, assustar, espetar.

No momento em que o projecto de elevar a cultura tauromáquica a património imaterial da humanidade ganhou uma primeira vitória, torna-se fundamental recordar que, neste ponto, todo o relativismo soçobra. Não há ciência nem ética alternativa que tenham legitimidade para sustentar uma cultura do sofrimento de um ser vivo. Em nome de nada. Nem da tradição, nem da beleza de um homem em calça justa, ou da coragem de um grupo de saloios prontos a agarrar o touro. Ou da nobreza de cavaleiros, vestidos como o Marquês do Pombal, a investir e a espetar. Ou de empregos, ou do que vos ocorra. Nada justifica a barbaridade, o terror, a falta de empatia, a degradação.

E não me falem de Hemingway. Isto porque, entre os aficcionadoas com algumas letras, há sempre alguém que nos apedreja com o exemplo de Hemingway. Mas um grande escritor não é um homem infalível nem um modelo ético. É apenas um grande escritor, que continuarei a ler. Posso espantar-me dessa horrenda falha na personalidade de um homem culto, sensível, amante de gatos. Mas não me falem dele, nem me digam que há, na tauromaquia, um espírito em que nunca entrei e não consigo compreender. É mais simples do que isso. Não existe, no bullying, nada a compreender. No bullying, por ironiade um touro, mais assustado do que bravo, mais desnorteado do que enraivecido, tudo o que vejo é uma terrível besta selvagem: o homem.


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