quarta-feira, 26 de julho de 2017

MEIA DOSE DE ÉTICA


           DIÁRIO DO ESTEVES
Sábado, 22 de Julho de 2017

     Meu filho veio passar a noite em minha casa.
     De manhã, ao sairmos, pediu-me: Deixa-me levar o carro, pai.
     O rapaz fez o código; está, por estes tempos, a receber lições de condução. O seu pedido soou-me com tamanha convicção, que não consegui negar-lho.
     Passei-lhe a chave. Vejo-o sentar-se, ajustar o banco, os espelhos. Coloca o cinto. Inicia uma lenta marcha-atrás. Estou de pé, próximo, preparado para o ajudar com quaisquer sinais ou gritos que venham a ser necessários.
     Não muito longe, encontra-se uma matilha de automóveis em repouso. Meu filho, recuando, está certamente a vê-los através do espelho. Aliás, trava. Põe primeira. Vai avançar. Porém, não vejo o carro a avançar. Pelo contrário. Continua paulatinamente a recuar. Que se passa? que se passa? que se passa? penso eu, porventura alto de mais. O impossível acontece. A viatura vai embater num dos automóveis que, lá atrás, dormitava, serenamente estacionado.
     Estou furioso, mas controlo-me. Sai daí! berro, furiosamente controlado.
     Sento-me ao volante. Reposiciono o carro no lugar de onde nunca devia ter deixado o meu inexperiente filho tirá-lo.
     Vou examinar a ferida no outro veículo. Lá está: é uma mossa indiscutível. O rapaz ainda tenta convencer-me de que talvez já lá se encontrasse. Duvido. Pego num cartão, escrevo o número do meu telemóvel.
     Não faças isso, pai. Ninguém viu.
     É isto que eu faço, sim, meu filho. Ninguém viu, a não ser a minha consciência.
     Ninguém faz isso, pai.
     Eu faço. Basta. - E entalo o cartão no limpa pára-brisas.

     Domingo, 23 de Julho de 2017

     Saio, de manhã cedo, com a minha filha que, na noite passada, dormiu em minha casa. Vou conduzi-la às provas de Patinagem Artística. Passando pelo veículo ferido, reparo que continua na mesma posição. Não despertou, não se moveu. O cartão ainda lá está - por isso não me haviam telefonado! Toda a noite pensara no acerto ou na idiotice do meu gesto. Toda a noite, as palavras do meu filho me borbulhavam no espírito. A minha mão, mais lesta do que a consciência, retira o cartão. Guardo-o no bolso (mais tarde, procurando-o, não o hei-de achar, embora não me lembre de o ter lançado no lixo). Entro com a miúda no meu automóvel, arranco.
     As provas de Patinagem são magníficas. Emociono-me. Não mereço esta filha. Sou um pulha. Discuto comigo próprio. Antes quixotesco que cobarde.
     Quando regressamos a casa, procuro um outro cartão. Redijo, de novo, o número de telemóvel. Desço e entalo-o, conscienciosamente, no limpa pára-brisas.
     Entretanto, à noite, converso com uma amiga. Conto-lhe a história. Aconselha-me a,  se o cartão ainda lá estiver, que o deite fora. Que tenciono fazer? Accionar o Seguro? É um disparate, a minha anualidade aumentaria de imediato. Pagar do meu bolso - uma mossa que, possivelmente, exigiria um trabalho de bate-chapas, o arranjo e a pintura de todo um painel?
        Essa noite, a caminho de casa, sorrateiramente, tiro o cartão - o automóvel não se movera ainda, como à espera que a minha consciência se decidisse de uma vez.


     Segunda-feira, 24 de Julho

     Saio cedo.
     O automóvel permanece no mesmo lugar. Como para me recordar a minha culpa.

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