terça-feira, 25 de julho de 2017

VENTURA E QUARESMA


Não há muito mais a dizer acerca do discurso de André Ventura.  É racista, porque trata toda uma etnia como se esta constituísse um bloco homogéneo de aldrabões e de arruaceiros. É populista, porque visa ganhar os votos de uma população que sempre viu, nessa etnia - com excepção óbvia do Quaresma, o qual, a seus olhos, só se torna um cigano igual aos outros quando falha um golo imperdoável - dizia eu: sempre viu, nessa etnia, apenas gente um tanto escura de pele, dividida em homens de chapéu e fato pretos e mulheres de saias pelos pés, falando, todos, muito alto nos corredores do supermercado, prontos para a rixa, o embuste, o crime. Ir por aí seria, analogamente, como se eu afirmasse que os comentadores televisivos da bola são mentecaptos. Alguns, reconheço que o sejam. Pelo menos um, indubitavelmente. Muitos, talvez. A maioria, não sei. Todos, certamente não.

Isto dito, tenho de acrescentar imediatamente um pormenor. No tsunami de reacções à tese de Ventura, identificamos, pelas estradas dos media e das redes sociais, duas exclusivas correntes: a dos que o apoiam intransigentemente, escrevendo, em geral num português das cavernas, que o homem teve a rara coragem de "pôr o dedo na ferida", uma vez que os ciganos são aquilo a que o portuga-tipo chamaria «uns autênticos ciganos»: assustam, enganam, desrespeitam, roubam, matam; e a dos escandalizados, virtuosos e politicamente correctos, para os quais os únicos problemas se resumem, neste caso, ao próprio preconceituoso e xenófobo André Ventura e ao preconceituoso e xenófobo povo português.
E porque é tão difícil pensar fora destes parâmetros, não saímos de um ruído em que se não analisa nem diagnostica coisa alguma.

Ora há, é certo, um problema de integração e de cultura: se não houvesse, nem o candidato a Presidente da Câmara de Loures teria conseguido excitar tão facilmente esses bandos de mortos-vivos magnetizados pelo seu discurso.
Quando, a propósito de certas comunidades ciganas, falo de uma questão cultural, refiro-me a um modo específico de vida em comum. A uma cultura, insisto: não à natureza de uma raça ou de uma etnia. Uma cultura que se formou, sem dúvida, ao longo de uma humilhante História de séculos de discriminação e de perseguições; correspondeu à necessidade de se protegerem e se defenderem dos Outros, os não-ciganos, os gadjos; cristalizou-se numa tradição de práticas de sobrevivência, que primam necessariamente pela dureza e pela desconfiança. Se muitos grupos de ciganos são grupos de resistentes, é evidente que isso não poderia deixar de significar, também, de resistentes à «sociedade». É, aliás, neste contexto que surgem as tradições indefensáveis, como a desigualdade entre os homens ciganos e as suas mulheres, os maus-tratos a animais no seio de muitas comunidades (a que eu assisti, e não raramente), ou a interdição de que as raparigas possam estudar para além de certa idade, ou conviver (ou namorar) com jovens não-ciganos, e casem ainda crianças. (E, já agora, a contrafacção? e o tráfico de droga? Serão apenas delírios do preconceito?)    

A linha que separa, de um discurso racista, à André Ventura, o que acabei agora mesmo de escrever, é ténue. Tão ténue, tão ténue, tão ténue, que soaria muito difícil a uma pessoa de Esquerda, ou a um simples defensor coerente dos Direitos Humanos, assumi-la, sem, aparentemente, estar a resvalar pelo barranco do preconceito. Contudo, o que revela é um conteúdo essencial, e tão evidente, tão evidente, tão evidente, que se torna assombroso não o vermos de imediato, a não ser por má-fé ou receio de parecer mal.
André Ventura propõe solucionar o assunto na sua Câmara, se vencer. Sabemos o que quer dizer.
Pela minha parte, nada proponho que não seja pensar o assunto, para se actuar coerentemente. Sem os votos, para uma Câmara, na linha do horizonte.
Que significa «pensar o assunto»?
Para que não subsistam dúvidas parasitas, o que argumento não é que lhes sejam retirados subsídios, ou as casas de habitação social em que moram. Julgo, pelo contrário, que estes, devidamente fiscalizados, devem estar incluídos num conjunto de medidas de integração e apoio a uma comunidade vulnerável e desfavorecida. Mas não o esgotam. Que mais se fez realmente? que outras estratégias se decidiram e vêm sendo aplicadas, no sentido de se cultivar a familiaridade com os seus direitos e, bem entendido, com os seus deveres? e como? que acompanhamento efectivo, e global, não episódico, se estudou e concretizou ou pode concretizar ao longo do tempo? que pontes se fundaram, nas escolas, nas associações culturais, nos bairros?
Pensar há-de significar pensar: autonomamente, sem equívocos e sem varrer as partes inconvenientes para debaixo do tapete.          

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