segunda-feira, 16 de setembro de 2019

OS VEGETARIANOS/ OS VEGAN E O SENTIMENTO DE CULPA DOS OUTROS



     Os vegetarianos e os vegan, quer os de longo curso, quer aqueles - como eu próprio - mais recentemente embarcados na causa, sabem bem como é que as coisas se processam, quando um deles reúne, num almoço ou num jantar, com um grupo de pessoas que não comungam a mesma filosofia. Terá de ser, e compreende-se, o vegetariano/vegan quem acaba "forçado" a dispender explicações. O que tem de quase pedir desculpa por uma opção que traz um certo incómodo: no restaurante «normal», é preciso contar com a boa vontade dos empregados, para se improvisar uma refeição, razoável, sem carne e sem peixe; e em casa de um amigo que correu o risco (ou caiu no erro) de o convidar, o vegetariano/vegan dificilmente recalca a noção, constrangida, de que está a dar um trabalho suplementar ao anfitrião - de que o está a maçar. Mais: são, como se esperaria, os vegetarianos ou os vegan, em minoria nessas situações, que passam a tarde ou a noite na berlinda. Há-de ser com eles que se brincará, ou à sua custa que a maioria se divertirá,  ou por sua causa que os convivas se exaltarão, primeiro que se habituem e se passe a outro tema de conversa. Ou seja: existe aqui uma certa perseguição. Ainda que em grau benigno (desgasta, mas não mata), é disso que se trata. A mim, não me humilha. Pelo contrário: levo muito a bem. Não me custa ser o alvo, explicar-me, repetir-me na resposta a questões que já ouvi mil vezes. Não contra-ataco nem aproveito para fazer proselitismo. Não acuso os carnívoros de coisa alguma. Convivo de bom grado com a minha escolha e com o facto de ela me tornar, até certo ponto, um alienígena.

     Lembro agora o facto, quando vejo, a propósito do PAN, por todo o lado, as pessoas que comem carne sentirem-se muito incomodadas, devido ao que consideram uma perseguição por parte dos vegetarianos, ou dos vegan. Entra aqui, quase sempre, a questão da culpabilização. Malditos sejam os vegetarianos/os vegan que, como Torquemada ou Hitler (não invento, a comparação vem-se fazendo cada vez mais, e com mais ligeireza) perseguem e culpabilizam sistematicamente os consumidores de carne, que querem apenas debicar sossegadamente o seu bifinho. Bolas! Estou feito ao bife!

     Posso calar-me. Faço-o, aliás, inúmeras vezes, a pretexto de não me agradar o papel de habitual desmancha-prazeres e estraga-convívios. Se me perguntam, é claro, não consigo nem devo deixar de dizer das razões por que me tornei vegetariano. As quais vão, previsivelmente, aterrar no mesmo ponto: não possuo esconderijos em que me oculte que o inevitável preço da carne é a liquidação de um animal que sente. Que sofre. Não possuo esconderijos em que me oculte que o delicioso sabor do leitão se baseia na morte de uma cria. De um bebé-porco. Isto determina, de há algum tempo, a minha forma de consumir. Todavia, por muito que me custe (e custa!), não imponho essa escolha, ou tento sequer converter os demais, e nunca me senti eticamente superior. Se bem que me interrogue sobre se os não-vegetarianos nunca pensam nisso; ou pensam, e não querem saber, porque o prazer, o hábito e a tradição têm mais força que quaisquer outras considerações. Ou se a dor dos animais irracionais lhes parece demasiado longínqua, demasiado diferente da própria, e da da sua espécie, para que chegue a incomodá-los. Ou se se resume tudo ao direito que seria natural e inalienavelmente  inerente à inatacável superioridade do ser humano em relação a todos os outros seres vivos. Não julgo. (Dirão que estou de má-fé. Que as minhas questões implicam já um juízo de valor; responderei que estas questões, como todas as questões honestas, implicam tão-só a estranheza e a incompreensão); ora, se não julgo, não culpo. Os meus filhos não são vegetarianos, e não os amo nem um pouco menos por causa disso. A maior parte dos meus amigos é composta por não-vegetarianos, e aceitamo-nos nas nossas desigualdades. Será, pois, que a tragédia da culpabilização, de que os consumidores de produtos animais se sentem vítimas, tem que ver com o facto de não estarem de bem consigo mesmos? Que por muito que me cale, evitando verbalizar afrontas, a simples existência e presença daquilo que escolho, lhes põe dilemas que prefeririam não se pôr?   

     Por variadíssimas razões de ordem política - e já o disse em diversos lugares e de muitas maneiras - não sou filiado no PAN. Nunca votei neles e não penso votar. Contudo, parece-me inegável que uma parte da sanha que vêm suscitando, após as últimas eleições e perante as recentes sondagens, radica neste problema. Verem, neles, cripto-fascistas, nazis encapotados, e novos Torquemada, pressupõe, em geral, a intolerância em face do que é diferente, e o susto no âmago de partidos instalados. A autoculpabilização faz o resto.







    



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