sexta-feira, 14 de outubro de 2022

DA FALTA DE NOÇÃO E DO CRISTIANISMO

 1. Estou sentado numa espécie de banco de jardim; medito sobre como principiar cuidadosamente esta crónica, de forma a, em simultâneo, relacionar situações muito diferentes, que me têm perturbado e feito reflectir nos últimos dias, expor sem superficialidade aquilo que penso, mas, ainda, opor-me a ideias e pessoas credíveis e amadas, sem que considerem que as deprecio, nem as ferir. A tarefa afigura-se-me excessiva e complexa.

Primeiramente, teria de me referir ao que cada vez mais se designa por "falta de noção": observo muitos humanóides destituídos da mais elementar noção, mas como compreender essa ausência, quando os sujeitos são pessoas que prezo, ou quando considero o mar ideológico  em que se banham, meritório e respeitável? Trata-se de um problema. Sou, então, obrigado a lembrar que a "falta de noção" tem que ver com o não reconhecimento (obtuso, parece sempre), de limites. Mas por que teriam os meus limites, ou os do meu grupo, morais ou do bom-gosto e do bom-senso, devir o padrão, o critério universal? Sem querer cair no perigoso e triste relativismo, a presença deste horizonte, deste lembrete, torna-se imperiosa quando, às vezes, nos interrogamos: Mas como raio é que ele não vê (o ridículo das suas palavras ou actos, a imbecilidade, a inexistência de um resquício de pudor ou decoro)?

A visão moral cristã não é estúpida nem superficial. Falo da autêntica visão cristã, não da apropriação que a igreja tradicional dela veio fazendo, reavivando os interditos do Antigo Testamento e o precipitado desejo de julgar outrem; falo, antes, da compaixão, do amor pelo próximo ou de pô-lo primeiro do que a mim mesmo. Julgo que se, em parte, esta visão, ao longo de muitos anos de ditadura, inspirou uma ética da esmolinha e da caridade, num Portugal miserável, e se, entre os mais abastados, não passava de um lenitivo para as suas consciências, que se mordiam, foi, por outro lado, sempre a possibilidade de ajuda em casos concretos, ou de manter acesos ver, ouvirlernão ignorar, em suma, preocupar-se; a - e vou usar uma palavra que conta, hoje, com poucos amigos -, a piedade.

Tudo isto exposto, não consigo, portanto, arrasar uma pessoa como Laurinda Alves. Quando muito, surpreender-me pela sua mudança. Mas, aí, nada de novo: surpreendo-me sempre com o espectáculo de uma pessoa, ainda jovem, tornando-se na reaccionária que nunca propriamente fora. O seu mundo fixou-se: cristão e conservador. Todavia, a sua intenção aspira sempre ao melhor, mesmo quando fantasia uma enorme marcha de mendigos e sem-abrigo. A falta de noção advém, aqui, da inadequação entre a intenção e os meios. A falta de noção resulta de que se pense que, se há tantas marchas (políticas, ou querendo dar a vibrar um grito de orgulho, etc.), por que não uma que confrontasse as conscienciazinhas burguesas com o sofrimento e a carência? 

Por que não? Porque é indigno, claro. Porque os sem-abrigo não são aberrações de feira. O que faltará a alguém como Laurinda Alves para medir isso, para intuí-lo, para ter noção do que há de errado nesta proposta de exposição, ainda que com a melhor das intenções? Em algum aspecto de toda este projecto, paradoxalmente, tem de subsistir uma falha moral, uma incapacidade de perceber que os indivíduos devem ser protegidos e não transformados em figuras de exibição e circo. Tem de subsistir algum desrespeito, no fundo, pelas pessoas concretas, ainda que a sua condição socio-económica nos indigne. Pergunto-me: a falha está contida na própria visão cristã do mundo? É-lhe intrínseca? São coisas diferentes?

2. Do meu ponto de vista (mas creio que esta catalogação não deixará de ser polémica, embora esteja longe de, aqui, pretender ser insultuosa), é no mesmo tipo de formação cristã que, inconscientemente, radica uma crítica generalizada contra a Joana Marques e o seu programa Extremamente Desagradável.

Quando oiço dizer, a pessoas que respeito e sigo com o melhor da minha atenção, que o Extremamente Desagradável roça o bullying e exerce um tipo de humor fascizante, malévolo, em sistemática busca da falha do outro como matéria de troça, a minha reacção mistura demasiados ingredientes em contradição. Por um lado, pergunto-me se estes críticos terão razão, e "perguntá-lo" é já, certamente, a manifestação de uma secreta culpabilidade, uma vez que o programa me faz rir.

Passemos à frente do facto de que, em Portugal, desde o 25 de Abril, aprendemos a usar com certa imoderação, convertendo-as em insultos, palavras formadas a partir de "fascista" (fascistóide, fascizante...); ainda me recordo de um colega que gostava de citar - espero que errónea ou descontextualizadamente - Roland Barthes, para me dizer que "a linguagem é fascista."

Esmiuçando um argumento que acabei de ler, tento compreender por que razão uma amiga minha afirma ser necessariamente malvadez ridicularizar alguém que teve menos oportunidades, ou instrução, ou meios, do que eu. Posso fazer crítica de costumes, aventa, sem nomear. O pecado reside em apontar. Sobretudo, tomando, por objecto, gente "vulnerável" (intelectual, social, cultural, economicamente).

É a visão cristã. Bondosa e incapaz de humilhar ou rebaixar. Ao mesmo tempo, há que acrescentar: trata-se de uma visão piedosamente sobranceira - nunca rir dos pobres de porventos nem dos pobres de espírito. Entendo. Sem ironia: entendo, realmente. Onde me parece que o argumento claudica? No facto de que Joana Marques se mete com pessoas que, de uma ou de outra forma, têm sucesso, poder, influência; triunfam neste mundo frágil e estranho, que nos domina, de algum modo, a todos: genericamente, as redes sociais. Um participante do Big Brother, por exemplo, não é apenas un abruti. Nem tão-só um homem ou uma mulher que profere inadidades e expressa preconceitos, reduzindo o mundo a uma dimensão única. Mas um homem ou uma mulher que fazem cabeças, influenciam, assumiram-se como modelos sociais. Ou seja, numa sociedade em mudança contínua e global, as classes culturais já não são células estanques. Como se, pertencendo, pelo nascimento, a esta, se tornasse de mau-gosto e moralmente inadequado gozar com os daquela, a quem, coitados! não fora oferecida, de bandeja, a mesma educação. Talvez não, mas a verdade é que eles próprios deram em educadores. Vendem lições. Escrevem livros de auto-ajuda. Entram-nos pela TV. Viajam para entrevistar o Bolsonaro himself e, não o conseguindo, conversam, pelo menos, com a Maria Vieira. Onde raio os vai Joana Marques buscar? Onde diabo os descobre? Retira-os, cruelmente, ao anonimato? Eram donas de casa sossegadas, cidadãos pacatos, ouvidos, por acaso, numa taberna, a discutir, preconceituosamente, os ciganos, a política, o futebol? Ora reparem melhor. Estão aí, por toda a parte, como zombies, revelando a sua vaidade, o seu senso-comum tacanho e os erros de Português. 

Num dos últimos Extremamente Desagradável Joana Marques debruçou-se sobre Rita Pereira, a propósito de uma conversa entre ela e Cláudio Ramos e Maria Botelho Moniz, num programa da TVI. Não quero mal a Rita Pereira. Nem me move a inveja, porque nada do que RP conquistou me interessa. Não sei se parece feio achincalhar-lhe o discurso. Mas, que diabo!, são as palavras dela, num momento televisivo com centenas de tele-espectadores. Ou milhares, não sei. Não se pegar na falta de noção e na imodéstia da actriz, no orgulho, patente, por se achar superior (e incompreendida), ou na franqueza de nos jurar que os seus detractores o são, porque ela está "aqui" e eles não", conquistou "o mercado, e eles não", conquistou "o mundo, e eles não", seria perder o potencial crítico e, até, pedagógico, do humor. Não se trata de rirmos de um lapso, de uma queda, de um erro. Mas de rirmos de um discurso cheio de si e de um olhar egocêntrico e auto-indulgente sobre si-no-mundo. O discurso poder invadir-nos, alastrar, implantar-se, e a crítica dever calar-se para não humilhar o visado, seria a negação de qualquer exercício de humor social e cultural.

segunda-feira, 7 de março de 2022

UCRÂNIA

 Quando olhamos à volta (ou em frente, directamente para a tv em hora de noticiário) e assistimos às notícias sobre forças russas que invadem a Ucrânia, famílias em desesperada fuga, a iminência da III Guerra Mundial, torna-se difícil não nos sentirmos atraídos pelas explicações dos repórteres e dos comentadores, como insectos pela luz. Ora a essa luz, a luz das interpretações que nos vão pondo diante dos olhos e nos fazem entrar pelos ouvidos, como se os media ocidentais fossem independentes e livres, tudo se torna linear, e é difícil não vermos o mal absoluto de um lado, tanto mais que Putin se presta à personagem de Darth Vader e, do outro lado, os ucranianos, como democratas indefesos, às mãos do temível "oligarca" (outra palavra que desatámos todos a usar, tal como bruscamente, na pandemia, aprendêramos a empregar o antes raro e quase desconhecido "comorbilidades".)

Daí que fervamos de indignação em face da cegueira do PCP, que foge à única narrativa que nos parece tolerável. Eu sei. O Partido Comunista irrita na sua monótona previsibilidade. Sejam os dados quais forem, o culpado é sempre o mordomo, ou, no caso, não um mordomo, mas o magnata de quem somos todos, países europeus, os mordomos.

Quanto mais escarafuncho, porém, mais vou lembrando ou descobrindo que a história é menos simples do que aquilo que a nossa necessidade de escolher um partido busca; que os nazis, não tão numerosos como Putin dá a entender na justificação do seu acto de guerra, contudo, existem perigosamente na Ucrânia: o Batalhão Azov é um facto, e a sua ideologia expõ-se, longe de complexos ou culpas, assumidamente como neonazi; que o governo ucraniano perseguiu de forma sistemática os habitantes russos no país. Nada dá razão a uma invasão: olhar para Putin como se fosse um salvador e um libertador seria estar a contar anedotas ao diabo. Mas num tecido histórico e geográfico muito tenso, sobre conflitos em que nos demos ao luxo de não reparar, perante um periclitante equilíbrio entre potências nucleares, o que acontece tem vértices, e espinhos, e responsabilidades de que as reportagens não sabem, ou não querem dar conta.

Seria necessário, no modo como pensamos acerca disto e do que fazer, que fôssemos capazes de tudo tomar em consideração. Que fôssemos capazes de estabelecer como prioridades 1) parar a guerra, o que não implica, nem deve implicar, qualquer apelo para que a Ucrânia se renda, acrecento-o de forma a  não subsistirem equívocos; 2) proteger os cidadãos ucranianos, medicando, alimentando, recebendo e abrigando, sem baixar, contudo, guarda, isto é, nunca deixando de discriminar ou de manter as críticas ou as exigências perante a presença de elementos repressivos e nazis que o governo da Ucrânia normalizou e vem utilizando (e nunca fazendo de conta de que isso, e a repressão sobre as franjas russas ou russófilas, nunca existiu na Ucrânia); e não, não me venham dizer que, ao assinalar este aspecto, confundo prioridades ou faço equivaler os dois lados, como se me esquecesse de que existem aqui, efectivamente, um invasor e um invadido. Não confundo, nem o faço: lembro que o apoio não significa varrer para debaixo do tapete o de que não convém falar. Quando muito, pois, pergunto por que razão, para a maioria dos defensores da Ucrânia, essa questão parece não existir; e 3) não desconsiderar nem humilhar a Rússia, não por medo do bully, mas porque a história foi, naquela região, uma história de desrespeito e ameaças de parte a parte, de reacção ao medo e à provocação, de equívocos, tanto como de uma visão imperial e de aspiração ao controlo dos recursos energéticos.

O rigor de, numa análise, querer ver tudo e nada deixar de lado, passa, muitas vezes, por ambiguidade e cobardia. Diria que, nestes tempos, é justamente o contrário. 

sábado, 20 de novembro de 2021

DA METAMORFOSE DOS PÁSSAROS

 Estou como só em face do filme que não sei se conseguirei compreender na totalidade, tais os prémios, os elogios da crítica e dos meus amigos, a tensão da expectativa, o desejo de nada deixar escapar. "Só", porque, não tendo podido ir a nenhuma das sessões em que a Catarina e algumas pessoas relevantes na cultura portuguesa me pegassem pela mão e me ajudassem a olhar, conto apenas com os meus olhos e a minha sensibilidade.


Imergindo - a imersão é,  aliás, uma imagem forte, em dois momentos e com dois protagonistas diferentes: ou a imersão de uma, que emerge como outro -, a primeira perplexidade, diria a primeira tremenda perplexidade com que me debato, é esta: como pode tamanho sofrimento estar na origem de tamanha beleza? Conheço outros casos. A arte é pródiga em exemplos de arrancar beleza à dor. Mas alguma coisa na nudez deste sofrimento, em "A Metamorfose dos Pássaros", pelo facto de não haver "personagens", mas "pessoas", reunidas na generosidade de um testemunho sentido e na tentativa de reconstrução de uma história de perda(s) que viveram, tornaria a beleza quase impossível. E contudo, ela é a substância destas imagens e da sua verdade. 


Uma segunda perplexidade - não sei de que ordem, se técnica, se estética - tem que ver com o modo como se casam estas diferentes linguagens, sem que, verdadeiramente, nenhuma seja a mera serva da outra: o texto, profundo, belo, que unifica as imagens, não é um seu instrumento, nem elas se lhe subordinam. E não coincidem exactamente no tempo: um instante antes da fala que a verbaliza, a imagem já se mostrou, na sua intensidade plástica, nas suas cores que nos cegam, pronta a diversas interpretações em que a voz, imediatamente a seguir, exercerá uma escolha, uma configuração, um sentido.


O sentido é em certa medida uma reinvenção de um passado. O que é o passado, o que sucedeu efectivamente? Espera, Catarina, as coisas não se passaram bem assim, diz em certo momento o pai. Mas que importa? E que importa que se dê a esse pai outro nome, por respeito pela inteligibilidade, evitando que nós, espectadores, nos percamos em mais do que um Henrique? A dor é verdadeira. E o filme trasmite-no-la incólume, a ponto de nos esmagar. As diferentes dores, aliás: pela morte da mãe/avó, e pela morte da mãe da Catarina, que parece repetir a anterior, mas é sempre única, terrível; e a dor de cada um dos que sobreviveram, que não pode ser realmente partilhada.


A fragilidade dos corpos é comovente, perante o sublime do sofrimento. A fragilidade do corpo de Catarina, quando a vemos tão vulnerável,  ou a dos corpos de seu pai e dos irmãos quando se reúnem para queimar a correspondência, demasiado íntima, entre o pai e a mãe deles. Como se faz? O que se guarda, e como? Que sentido, fiel ou em parte criado, se pode preservar?


Por uma poética ironia, fazia-me alguém notar, o desaparecimento da correspondência não impediu que as vozes gravadas da avó e do pai e dos tios de Catarina, num disco então enviado ao avô, em alto mar, com que o filme termina, persista como uma parte indestruída desse passado. Bem como as falas da mãe de Catarina, visitando-a, em diálogos cheios de ternura e de humor (e de espanto pelos preços das casas em Lisboa, ou pelos telemóveis sem teclas). Como se, mais do que uma fantasia, fosse a expressão de uma intimidade que nenhuma morte destruiu.

As plantas de sua mãe, invadindo e tomando conta da casa, são uma prova para quem ainda duvidasse.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

DA OBRA FEITA

 

É significativo que Carlos Carreiras espalhe, após as eleições de que saiu vitorioso, gigantescos cartazes onde agradece o favor de o terem guindado de novo ao poder. Aí estão, por todo os recantos do Concelho: «Obrigado Cascais». Começo por aí, visto que agradecer, efusivamente, o resultado de umas eleições em que mais de 50% dos eleitores preferiu não aparecer é, julgo eu, um sinal claro, uma indicação do pouco valor que se dá ao espírito da democracia. Não ponho em causa os resultados. Não contesto a vitória. Os votantes não vieram, viessem. Não se discute, no resultado, a forma da democracia. Mas ter o topete de agradecer a «Cascais» os votos de menos de metade das pessoas, soa mal. Hesito entre classificar este «obrigado» como manipulação ou simplesmente falta de noção.


Porém, o ponto continua a ser a razão por que esses quantos eleitores escolheram Carreiras.

Continua a afirmar-se, tenho ouvido, que há «obra feita»: "Não quero saber de mais nada. Pelo menos, o homem tem obra." Acontece que «obra» é um dos termos mais abrangentes e mais ambíguos que poderíamos imaginar. Obra feita!? Cruzes! Por um lado, é simples agradar aos mais idosos com vacinas para todos, ou com a possibilidade de se ir a casa vacinar a pessoa que não pode deslocar-se; ou acenar com máscaras gratuitas, não interessando ao potencial eleitor como são elas conseguidas. Isto é «obra». Mas a edificação, os prédios, o betão são o que, por maioria de razão, nos parecem obra. As pessoas apreciam, os turistas agradecem.


E esta «obra» vai-se precipitando sem atender a que Cascais valia por uma beleza e por um conforto naturais, sem sufocos nem devastação. Esta obra vai-se precipitando sem atender a que Cascais foi sempre uma cidade moderna, sim, mas com espaços largos e intocáveis de praia e de flora e fauna únicas. Ensinar a estas pessoas, com euros a brilhar nos olhos, que mandam construir desenfreadamente, em nome da habitação, do emprego e do turismo, que destruir um espaço antigo de arvoredo não é compensado por se estender, ao lado dos novos prédios, a romper por todo o lado, uns tapetes de relva com umas quantas árvores novas, é trabalho perdido. Ensinar-lhes que construir junto ao mar terá custos ecológicos que os nossos descendentes irão pagar muito caro, é inútil. Porque do mesmo modo que lhes falta o sentido da história, falta-lhes completamente um autêntico sentido do futuro. Das consequências que a longo prazo advirão da sua obra. Falta-lhes de todo a cultura, o conhecimento, a visão. Já para não falar da estética - mas parece que a muitos agrada ver transformar-se Cascais numa Nova Iorque em miniatura. 

Muitos movimentos de cidadãos, desprezados por Carreiras, apodados por ele de criptocomunistas ou hippies, constituem uma última resistência contra a megalomania:  SOS Quinta dos Ingleses e Fórum por Carcavelos, SOS Parque Natural Sintra-Cascais, a Associação de Moradores da Penha Longa,  a ADA – Associação de Defesa da Aldeia de Juso, os Amigos do Parque das Gerações, os de Birre (GEC), a Associação de Moradores da Areia, a Cascaisea, SOS Costa da Guia, Diz Não ao Alargamento do Aeródromo de Tires. Irá um poder absoluto, intransigente, arrogante e surdo escutar as suas razões?

"Obrigado Cascais"? Por nada, por nada.              

domingo, 19 de julho de 2020

A HUMILHAÇÃO PÚBLICA


Não tendo noção da sua própria tolice, o que me parece próprio de qualquer pessoa tola, uma professora de Português, cujo nome esqueci, veio, feliz da vida, responder a umas perguntas do Expresso, no que seria a entrevista da sua vida. Os tais 15 minutinhos de fama a que todos aspiram.

Acontece que, a uma das questões, reagiu com a sinceridade dos inocentes, ou dos incautos, ou dos ignorantes. Foi mais forte do que ela. Como quem não consegue conter um arroto, confessou que adora ter livros, mas nunca gostou de ler; anda, aliás, a esforçar-se para acabar uma obra de Valter Hugo Mãe, odisseia para a qual se concede o Verão .

Não se tem falado de outra coisa. Tomaram-na como a face visível e triste do estado a que a classe docente chegou, entre nós. Da mesma maneira que, antes, se achincalhou a satisfação do grupo de professores que estivera nO Preço Certo, liquida-se agora a senhora que se rebaixou a este deprimente elogio da ignorância.

A mim, para início de conversa, o caso não espanta. Os professores dos primeiros ciclos e do ensino secundário têm sido,  desde há muitos anos e pela mão de sucessivos ministros dos governos dos partidos que já estiveram no poder, reduzidos à indigência e à precariedade. Uma profissão de tal modo sub-proletarizada e desrespeitada já só pode atrair, das duas uma, ou pessoas cuja vocação aceita os mais infamantes sacrifícios, ou pessoas com pouca qualidade e variadíssimas limitações. Do mesmo modo que, numa certa altura, infelizmente! as humanidades se tornaram a área preferida dos estudantes menos rigorosos e menos exigentes consigo mesmos (os que a escolhiam com o fito de escapar à matemática), também "dar aulas" veio sendo o último recurso de quem nada mais sabe ou quer fazer.

No meio de tudo isto, perturba-me que a candura desta professora seja elevada ao lugar de representação do miserabilismo intelectual e cultural da carreira docente. Porquê? Porque é o apontar o dedo a alguém que não é uma persona pública,  mas um indivíduo que se expôs quase por acidente, com um filho pequeno, a que se referiu na entrevista, e uma-mãe-e-um-pai-e-amigos. As redes vão liquidá-la. Vão trucidá-la. E tenho pena, porque por grave que seja o que disse (e é gravíssimo, nada de confusões), ela é mais uma vítima do que de uma culpada.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

A TAP: CRÓNICA COM UM PALAVRÃO MERECIDO



Todas as vezes que me lembro de ter recorrido à TAP, me vêm associadas a aventuras aziagas, esperas de horas, inesperadas mudanças de avião porque, afinal, não se conseguia solucionar certo problema daquele em que os passageiros estavam já acondicionados há demasiado tempo.
Quando se fala nos Transportes Aéreos Portugueses, é, ou tem sido, do ponto de vista dos economistas. Uns indivíduos de óculos e pouco cabelo peroram em televisões ou consideram, em jornais, exaustivamente, o tema. Se a empresa é viável, se deve pertencer ao Estado, ou se deveriam privatizá-la. Ora o meu olhar sobre a TAP é, neste momento, de outra ordem. Como consumidor. Como, digamos, utente - ou ex-utente. Na óptica do utilizador, portanto.

Parecerá porventura de uma grande incoerência que um homem de esquerda se atreva a aventurar-se por uma confissão como a que acabarei por vos fazer. Tratando-se de um homem de esquerda de uma certa idade (e não é indesmentível que temos, todos, uma certa idade?), a incoerência detectada enunciar-se-ia desta forma penalizada: «O gajo está gagá!»; mas eis, ainda assim, a confissão: quando eu era criança, em tempos de salazarismo e marcelismo, a TAP fazia-me voar a imaginação e os sonhos. Observava aqueles viajantes, familiares ou amigos, a percorrer os últimos metros até ao avião, levando a tiracolo um saco branco (com o logotipo da transportadora, a vermelho e verde), acenando-me já ao longe, e invejava-os com força. Contavam-me, depois, histórias do conforto no ar, da simpatia das hospedeiras, a que chamávamos aeromoças, e de uma refeição requintada.

Fiz a minha primeira viagem de avião, já com 18 ou 19 anos, na qualidade de retornado. Ou filho de retornados, uma vez que, no que me diz respeito, nascera em Moçambique e não "retornava" propriamente a lugar algum. Era a primeira e foi a última vez que a TAP esteve à altura das minhas expectativas. O sonho realizava-se. Voei, bem tratado, mimado, naquela subtil vertigem entre o desejo e o receio, fitando, pela janela, Lourenço Marques a diminuir depressa, as nuvens flutuando imovelmente e, por fim, a cidade de Lisboa aumentando.

De aí em diante, sempre que voltava a apostar na TAP, saía frustrado ou indignado. A ambição de voar tornava-se uma folha amachucada. Era mau. As refeições passavam a uns amendoins insípidos, ou a umas sandes inapetecíveis, com um sumito breve. Em alguns casos, nem tanto. Os atrasos eram constantes e inconcebíveis. A ponto de, a partir de certo momento, me ter jurado: TAP nunca mais! Falhei, contudo, no compromisso comigo, dando entretanto ouvidos à funcionária de uma agência de viagens, que me garantia que a coisa já fora, de facto, como eu lamentava, mas transformara-se, e substancialmente: tínhamos de novo a companhia de outros tempos. Relatava-me as suas próprias experiências de viajante da TAP, magnificamente bem-sucedidas. 

Acatei; tive um episódio de fé, gritei Aleluia! e rendi-me. Dificilmente poderia ter sido pior. À ida e à vinda, tudo, e tudo foi tanta coisa, se resume a estas duas palavras: incompetência e antipatia. E, já agora, mais uma: desconsideração.

A TAP é uma merda. Ou, para não ser deselegante: uma senhora merda.

domingo, 27 de outubro de 2019

FENOMENOLOGIA DA ADESÃO AO QUE NOS PERTURBOU




O longo e filosófico título tem um propósito: o de sugerir a revisitação honesta de um processo em que, desde o momento em que fomos confrontados com o estranho (aquilo que nos desassossega e questiona hábitos), até aqueloutro momento em que lhe compreendemos o sentido, de facto nos expandimos e mudámos. Não trouxemos o novo para o interior dos quadros pré-existentes; revolucionámo-los, de modo a alcançar essa novidade que neles não cabia.

Porque quando vi as fotos do Assessor em saias, o meu primeiro movimento foi de repúdio e recuo. A inteligência mobilizou-se de imediato para justificar racionalmente essa não-aceitação. Não era difícil. As redes facultaram-me prontamente inúmeros exemplos de gente de esquerda, ideologicamente madura e bem-pensante, que não hesitou em explicar que aquilo era de mais. Erro estratégico, aventavam os mais tímidos. Uma provocação que afugenta pessoas, acrescentavam outros. Exibicionismo desnecessário; dramatização do radicalismo. Que o Parlamento não é um teatro. Que defendemos as minorias, com ideias e argumentos, não com um número de ópera, se não de circo. Ou de passerelle. Em resumo: folcloricamente. Por fim, que a figura fazia lembrar uma freira, ou que só lhe faltava a burka para a vermos como um exemplo de opressão no trajar, nunca de uma libertação.

Certo. O último constitui o argumento mais forçado, porventura a raiar a idiotice. Em todo o caso, tantos ensaios no fundamentar de primeiras impressões e uma divisão tão profunda adentro de um universo de pessoas que se intitulam, e em geral serão, revolucionárias ou, pelo menos, não-conservadoras, exigiram, de mim, pôr-me a pensar. A rever ideias. A considerar, com toda a seriedade, posições que se espadachinavam entre si.
Dois pontos cartesianamente firmes em que assentei o método da minha averiguação consistiram, um, em que o repúdio inicial  de muitos dos detractores provém da perturbação por aquilo que se estranha, precisamente como sucedera comigo. Sim, não terá sido realmente por se achar Kitsch (também o disseram), ou presunçoso, que se criticou tanto. De resto, usam-se, no Parlamento, gravatas Kitsch e presunçosas, de muitas maneiras, e não se fala delas. Estão dentro da normalidade. Diria, portanto, que esse juízo de gosto advém mais tarde, já como racionalização de um desagrado imediato.
Tomem nota de que escrevi «o repúdio inicial de muitos (dos que repudiaram)», em vez de «todos (os que repudiaram)», para não incorrer numa generalização abusiva. Mas certamente muitos, mesmo tratando-se de pessoas de esquerda, respondiam a um impulso conservador básico, ao incómodo perante o invulgar que percepcionavam. Aliás, a percepção não é, aqui, indiferente. Com as ideias, parece tudo mais fácil. No abstracto, revemo-nos na dignidade e na beleza de confrontar os usos. Não custa, por exemplo, ser-se anti-racista em teoria. Complicado, infelizmente, é manter, por vezes, a coerência, quando estamos perante o negro ou o cigano concretos (e o mesmo, mutatis mutandis, para o gay, a lésbica, o transsexual), aqui ao pé de nós, vistos e ouvidos quando fazem frente e refilam, ou assumem radicalmente diferenças e direitos. Surdamente, quantas vezes, o racismo que ultrapassáramos no mundo inteligível, faz uma discreta reaparição pela porta dos fundos.

O outro ponto tem que ver precisamente com a minha resposta à ideia de que um homem vestindo saias, como se fosse uma obrigação ideológica, aproxima mais esse gesto da opressão, ou da auto-opressão, do que de uma libertação.

Que resposta? Acerca deste último ponto, revirando-o em todas as suas faces, não vejo como se pode concluir outra coisa que não, e deixem-me sintetizar categoricamente: vestirmos o que quisermos (e não acredito que, neste caso, alguém tenha sido forçado), Kitsch, vaidoso, presunçoso ou não, sejam quais forem as causas, ou Causas, e por maioria de razão quando se rompe com os hábitos mais enraizados e com o socialmente aceite, contém, como motor, uma decisão livre. Sobre isso, ponto final.

Admitindo esta conclusão, grande parte dos argumentos que contestam o vestuário do senhor devêm irrisórios. Foi aquilo uma provocação? Pode ter sido. Mas uma provocação assumida como um gesto de liberdade, em nome do direito de me vestir excentricamente, faz todo o sentido. Um erro estratégico? Um afastamento de pessoas, em vez de um convite a que se juntem às ideias e à luta do partido? A divisão, ao invés da união, coisa típica da extrema-esquerda ou da esquerda caviar e dos trotskismos? Talvez sim, talvez não. No fundo, que importa? Nem sempre a posição radical em que se crê, deve ser sacrificada à estratégia. Para já, teve o mérito de pôr a esquerda a pensar em questões que fogem aos programas, a discuti-las sem rede, a questionar-se e a afinar argumentos. Não é isso uma mudança? Não é isso, desde logo, a mudança de nos obrigar a pensar e a formular um juízo acerca de uma mudança?

«Ah, e tal, mas trata-se de uma distracção.»
Perante o que o Livre impõe à discussão pública (para já, a gaguez de Joacine ou a saia do Assessor), abdicaríamos ou esquecer-nos-íamos - assim reza uma crítica mais - de discutir o politicamente central, para nos dispersarmos e desperdiçarmos por miudezas. Mas, ainda uma vez, não posso concordar: a gaguez de uma Deputada ou a saia de um Assessor do sexo masculino são questões marcantes e maiores relativamente à natureza e aos limites do que entendemos por inclusão. São questões maiores relativamente ao modo como consideramos o peso dos costumes e, portanto, com implicações éticas, ergo, é claro, políticas.

Uma derradeira observação, de lateral importância no caso: descobrindo, entretanto, várias fotografias de homens contemporâneos em saia, e deixando que a estranheza paulatinamente se entranhe, até o horror estético se transmuta numa adesão tranquila. Ficam bem? Há uns que sim. Vários têm, sem dúvida, muitíssimo estilo. Capto perfeitamente a beleza de uma configuração possível, de uma forma nova. E tudo são formas que podemos escolher, libertando o nosso gosto e assumindo direitos que nem percebo em nome de que seriam negados.